APOLOGÉTICA - GALILEU
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O CASO GALILEU
Gostaria de entender melhor a questão de Galileu e sua condenação pelo Santo Ofício. A Igreja também cuidava de assuntos da Ciência? (Ricardo Costa – por e-mail)
De certa forma, sim. Naqueles tempos, poucas pessoas tinham acesso a estudos, e era a Igreja quem mais promovia o desenvolvimento cultural, incluindo as pesquisas científicas. As escolas e universidades eram fundadas por ela, e grande parte dos cientistas e descobridores eram também clérigos, como por exemplo Copérnico, antecessor de Galileu na defesa da teoria heliocêntrica. A autoridade da Igreja se estendia sobre todas as áreas do conhecimento e da vida humanas, porque a sociedade ainda era fundamentada na fé e na lei de Deus, embora, no meio intelectual, já tivesse tido início o processo de separação entre a fé e a razão, ou melhor, o processo de “eudeusamento” ou idolatria da razão. De modo geral, porém, ainda não se via na fé um obstáculo à ciência. Ao contrário, ela a direcionava, porque todos aceitavam (em tese, ao menos), que em Deus estava a origem e o sentido de toda a criação.
O centro do problema, no caso de Galileu, estava na interpretação da Bíblia, que também evolui e se desenvolve de acordo com os padrões culturais, a compreensão e as necessidades de cada época. A palavra de Deus não muda, mas os elementos literários usados para exprimi-la são próprios de um determinado tempo, contexto e cultura, precisando portanto ser interpretados e transpostos para a cultura de quem lê, para que a mensagem possa ser corretamente compreendida.
No tempo de Galileu (inícios do século XVII), ainda não estava muito clara a distinção entre a Escritura e a sua interpretação, nem havia ainda a consciência de que a Bíblia não pretende entrar na área das ciências, mesmo quando mencione elementos e fenômenos naturais, pois sua mensagem pertence ao âmbito religioso.
Na verdade, desde os primeiros séculos do Cristianismo já se conheciam outras formas de interpretar a Escritura, além do sentido literal. Entretanto, depois que Lutero (no século anterior ao de Galileu), começou a difundir a teoria do “livre exame”, a Igreja voltou a prender-se mais à interpretação literal, como uma defesa contra os males que o “livre exame” poderia causar à fé cristã. O sentido literal era aceito como princípio, a não ser que houvesse razões importantes para justificar outras formas de interpretação.
Ao defender que a terra gira em torno do sol, Galileu parecia opor-se à Bíblia, que em algumas passagens dá a entender que a terra é fixa, e que é o sol que gira em torno dela (Salmo 103,5; Eclesiastes 1,4-5; Josué 10,12-13). A teoria de Galileu foi, de fato, rejeitada pela Igreja por esse motivo, mas as coisas se passaram de forma bem diferente daquela versão distorcida que normalmente se divulga, com a Igreja passando por implacável inimiga da ciência e da liberdade de pensamento.
Para começar, Galileu não foi condenado à morte, e muito menos à fogueira, como se lê até mesmo em alguns manuais de catequese.
Além disso, a teoria do heliocentrismo, embora tivesse tido defensores já antes de Cristo, não era ainda aceita na comunidade científica da época de Galileu, por falta de provas. De fato, ninguém ainda tinha conseguido provar que a terra girava em torno do sol, nem dar resposta às dificuldades que pareciam contradizer essa tese, e que não eram apenas bíblicas, mas igualmente científicas (na verdade, essas dificuldades só foram resolvidas dois séculos depois).
Portanto, embora Galileu tivesse muitos admiradores e defensores (também dentro da Igreja), o fato é que nunca conseguiu provar sua tese, e a maioria dos astrônomos da época se opunha a ele, também por motivos científicos e matemáticos, não apenas bíblicos. É um grande erro apontar a Igreja (ou a interpretação literal da Bíblia) como única vilã nessa história.
Quando Galileu sofreu a primeira condenação, em 1616, o motivo não foi propriamente a sua teoria, mas sim a forma como ele a defendeu. Com efeito, em vez de apresentar o heliocentrismo apenas como hipótese, como qualquer teoria científica deve ser colocada (já que, em ciência, nada é definitivo), ele insistiu em apresentar suas idéias como verdade absoluta e inquestionável. Além disso, em vez de responder às acusações com argumentos científicos (ou seja, em vez de ficar em sua área), preferiu defender-se com argumentos bíblicos, entrando numa área que não era a sua. O debate, ao invés de científico, tornou-se um debate exegético. Foi por causa disso, e também de sua atitude irreverente e atrevida, que Galileu acabou sendo condenado, embora tivesse muitos defensores e simpatizantes também no meio eclesiástico, incluindo o Papa (tanto que, logo após a condenação, foi contratado como professor de ciências pelos padres das Escolas Pias). A Igreja não queria impedir as pesquisas científicas (Copérnico, por exemplo, nunca foi incomodado), mas apenas não quis reconhecer, como incontestável, um argumento sobre o qual não havia ainda provas decisivas. Sabe-se hoje que essa condenação foi um erro, mas um erro perfeitamente compreensível e justificável, dentro dos padrões culturais da época e do contexto em que a controvérsia ocorreu.
A condenação, em todo caso, consistiu simplesmente na proibição de continuar ensinando sua teoria e de divulgar as obras onde a defendia, sentença que Galileu aceitou e comprometeu-se a cumprir. Mas não cumpriu, e essa desobediência motivou uma segunda condenação, em 1633. Foi condenado a três anos de prisão, mas a sentença foi comutada pelo Papa no dia seguinte. Galileu nunca foi submetido a torturas, nem privações físicas de espécie alguma. Continuou a trabalhar em suas pesquisas, e morreu em idade avançada, em 1642, assistido por um sacerdote, como bom católico.
Quanto à questão da interpretação da Escritura: na época de Galileu, os teólogos julgavam que a Bíblia defendia o geocentrismo, por causa de algumas passagens que apresentam a terra como “eternamente imóvel”, e outras, como a de Josué 10,12-13, que se refere a um milagre em que o sol “parou”, prolongando o dia e possibilitando aos hebreus vencer a batalha contra os amorreus, em Gabaon.
É compreensível que os antigos concluíssem que o sol girava em torno da terra, já que o viam surgir de um lado e desaparecer do outro, todos os dias. Quando, porém, a ciência descobriu que não era assim, e que a sucessão dos dias e das noites se devia ao movimento de rotação da terra em torno de si mesma, tentou-se encontrar outras interpretações para a afirmação bíblica de que “o sol parou”, uma vez que não se podia admitir que a Bíblia estivesse errada. Alguns concluíram que a terra é que tinha parado em sua rotação em torno de si mesma, dando a impressão de imobilidade do sol; outros pensaram em relâmpagos ou outros fenômenos meteorológicos que teriam iluminado a noite, fazendo parecer que ainda era dia.
Hoje, sabe-se que a autoridade da Bíblia é de outro tipo: ela é com certeza a palavra de Deus aos homens, mas serve-se de uma linguagem temporal e adaptada a determinado contexto cultural, para transmitir verdades eternas. As palavras podem mudar de sentido de acordo com a compreensão do ouvinte, sem que haja alteração na mensagem. A Bíblia nunca pretendeu ensinar verdades científicas.
No caso dessa passagem de Josué, os estudos recentes indicam que se trata de uma figura literária. Com efeito, os antigos israelitas usavam uma expressão poética segundo a qual, quando acontecia uma tempestade, o sol se retirava, escondendo-se em sua tenda, onde ficava imóvel. Como o versículo 11 do relato de Josué fala numa tempestade de granizo, pode-se crer que essa tempestade foi a verdadeira forma pela qual Deus protegeu Israel, sendo a “parada do sol” simplesmente uma figura literária usada para referir-se à própria tempestade de granizo, que Deus enviou para proteger seu povo.
Seja como for, essa passagem bíblica não tem a intenção de ensinar astronomia, e sim de mostrar ao povo o poder de Javé, que, ao contrário dos ídolos pagãos, é de fato o Deus vivo e poderoso, senhor da natureza e presente nos acontecimentos da história. Tudo isso é verdade e continua sendo atual. O que importa, nesse caso, não é o que de fato aconteceu, e sim aquilo que o povo viu, e compreendeu. Mesmo que eles tenham, realmente, visto o sol parado no céu, isso não nos obriga a admitir a ocorrência do fenômeno cósmico correspondente. Também nas aparições de Fátima aconteceu um “milagre do sol”; e, para provar a intervenção de Deus, não é necessário que o astro-rei tenha realmente executado toda aquela dança no espaço. A multidão ali reunida pode ter tido simplesmente uma visão. O que importa é que Deus se manifestou daquela forma, e o povo creu...
(Setembro – 2004)
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O CASO GALILEU
Gostaria de entender melhor a questão de Galileu e sua condenação pelo Santo Ofício. A Igreja também cuidava de assuntos da Ciência? (Ricardo Costa – por e-mail)
De certa forma, sim. Naqueles tempos, poucas pessoas tinham acesso a estudos, e era a Igreja quem mais promovia o desenvolvimento cultural, incluindo as pesquisas científicas. As escolas e universidades eram fundadas por ela, e grande parte dos cientistas e descobridores eram também clérigos, como por exemplo Copérnico, antecessor de Galileu na defesa da teoria heliocêntrica. A autoridade da Igreja se estendia sobre todas as áreas do conhecimento e da vida humanas, porque a sociedade ainda era fundamentada na fé e na lei de Deus, embora, no meio intelectual, já tivesse tido início o processo de separação entre a fé e a razão, ou melhor, o processo de “eudeusamento” ou idolatria da razão. De modo geral, porém, ainda não se via na fé um obstáculo à ciência. Ao contrário, ela a direcionava, porque todos aceitavam (em tese, ao menos), que em Deus estava a origem e o sentido de toda a criação.
O centro do problema, no caso de Galileu, estava na interpretação da Bíblia, que também evolui e se desenvolve de acordo com os padrões culturais, a compreensão e as necessidades de cada época. A palavra de Deus não muda, mas os elementos literários usados para exprimi-la são próprios de um determinado tempo, contexto e cultura, precisando portanto ser interpretados e transpostos para a cultura de quem lê, para que a mensagem possa ser corretamente compreendida.
No tempo de Galileu (inícios do século XVII), ainda não estava muito clara a distinção entre a Escritura e a sua interpretação, nem havia ainda a consciência de que a Bíblia não pretende entrar na área das ciências, mesmo quando mencione elementos e fenômenos naturais, pois sua mensagem pertence ao âmbito religioso.
Na verdade, desde os primeiros séculos do Cristianismo já se conheciam outras formas de interpretar a Escritura, além do sentido literal. Entretanto, depois que Lutero (no século anterior ao de Galileu), começou a difundir a teoria do “livre exame”, a Igreja voltou a prender-se mais à interpretação literal, como uma defesa contra os males que o “livre exame” poderia causar à fé cristã. O sentido literal era aceito como princípio, a não ser que houvesse razões importantes para justificar outras formas de interpretação.
Ao defender que a terra gira em torno do sol, Galileu parecia opor-se à Bíblia, que em algumas passagens dá a entender que a terra é fixa, e que é o sol que gira em torno dela (Salmo 103,5; Eclesiastes 1,4-5; Josué 10,12-13). A teoria de Galileu foi, de fato, rejeitada pela Igreja por esse motivo, mas as coisas se passaram de forma bem diferente daquela versão distorcida que normalmente se divulga, com a Igreja passando por implacável inimiga da ciência e da liberdade de pensamento.
Para começar, Galileu não foi condenado à morte, e muito menos à fogueira, como se lê até mesmo em alguns manuais de catequese.
Além disso, a teoria do heliocentrismo, embora tivesse tido defensores já antes de Cristo, não era ainda aceita na comunidade científica da época de Galileu, por falta de provas. De fato, ninguém ainda tinha conseguido provar que a terra girava em torno do sol, nem dar resposta às dificuldades que pareciam contradizer essa tese, e que não eram apenas bíblicas, mas igualmente científicas (na verdade, essas dificuldades só foram resolvidas dois séculos depois).
Portanto, embora Galileu tivesse muitos admiradores e defensores (também dentro da Igreja), o fato é que nunca conseguiu provar sua tese, e a maioria dos astrônomos da época se opunha a ele, também por motivos científicos e matemáticos, não apenas bíblicos. É um grande erro apontar a Igreja (ou a interpretação literal da Bíblia) como única vilã nessa história.
Quando Galileu sofreu a primeira condenação, em 1616, o motivo não foi propriamente a sua teoria, mas sim a forma como ele a defendeu. Com efeito, em vez de apresentar o heliocentrismo apenas como hipótese, como qualquer teoria científica deve ser colocada (já que, em ciência, nada é definitivo), ele insistiu em apresentar suas idéias como verdade absoluta e inquestionável. Além disso, em vez de responder às acusações com argumentos científicos (ou seja, em vez de ficar em sua área), preferiu defender-se com argumentos bíblicos, entrando numa área que não era a sua. O debate, ao invés de científico, tornou-se um debate exegético. Foi por causa disso, e também de sua atitude irreverente e atrevida, que Galileu acabou sendo condenado, embora tivesse muitos defensores e simpatizantes também no meio eclesiástico, incluindo o Papa (tanto que, logo após a condenação, foi contratado como professor de ciências pelos padres das Escolas Pias). A Igreja não queria impedir as pesquisas científicas (Copérnico, por exemplo, nunca foi incomodado), mas apenas não quis reconhecer, como incontestável, um argumento sobre o qual não havia ainda provas decisivas. Sabe-se hoje que essa condenação foi um erro, mas um erro perfeitamente compreensível e justificável, dentro dos padrões culturais da época e do contexto em que a controvérsia ocorreu.
A condenação, em todo caso, consistiu simplesmente na proibição de continuar ensinando sua teoria e de divulgar as obras onde a defendia, sentença que Galileu aceitou e comprometeu-se a cumprir. Mas não cumpriu, e essa desobediência motivou uma segunda condenação, em 1633. Foi condenado a três anos de prisão, mas a sentença foi comutada pelo Papa no dia seguinte. Galileu nunca foi submetido a torturas, nem privações físicas de espécie alguma. Continuou a trabalhar em suas pesquisas, e morreu em idade avançada, em 1642, assistido por um sacerdote, como bom católico.
Quanto à questão da interpretação da Escritura: na época de Galileu, os teólogos julgavam que a Bíblia defendia o geocentrismo, por causa de algumas passagens que apresentam a terra como “eternamente imóvel”, e outras, como a de Josué 10,12-13, que se refere a um milagre em que o sol “parou”, prolongando o dia e possibilitando aos hebreus vencer a batalha contra os amorreus, em Gabaon.
É compreensível que os antigos concluíssem que o sol girava em torno da terra, já que o viam surgir de um lado e desaparecer do outro, todos os dias. Quando, porém, a ciência descobriu que não era assim, e que a sucessão dos dias e das noites se devia ao movimento de rotação da terra em torno de si mesma, tentou-se encontrar outras interpretações para a afirmação bíblica de que “o sol parou”, uma vez que não se podia admitir que a Bíblia estivesse errada. Alguns concluíram que a terra é que tinha parado em sua rotação em torno de si mesma, dando a impressão de imobilidade do sol; outros pensaram em relâmpagos ou outros fenômenos meteorológicos que teriam iluminado a noite, fazendo parecer que ainda era dia.
Hoje, sabe-se que a autoridade da Bíblia é de outro tipo: ela é com certeza a palavra de Deus aos homens, mas serve-se de uma linguagem temporal e adaptada a determinado contexto cultural, para transmitir verdades eternas. As palavras podem mudar de sentido de acordo com a compreensão do ouvinte, sem que haja alteração na mensagem. A Bíblia nunca pretendeu ensinar verdades científicas.
No caso dessa passagem de Josué, os estudos recentes indicam que se trata de uma figura literária. Com efeito, os antigos israelitas usavam uma expressão poética segundo a qual, quando acontecia uma tempestade, o sol se retirava, escondendo-se em sua tenda, onde ficava imóvel. Como o versículo 11 do relato de Josué fala numa tempestade de granizo, pode-se crer que essa tempestade foi a verdadeira forma pela qual Deus protegeu Israel, sendo a “parada do sol” simplesmente uma figura literária usada para referir-se à própria tempestade de granizo, que Deus enviou para proteger seu povo.
Seja como for, essa passagem bíblica não tem a intenção de ensinar astronomia, e sim de mostrar ao povo o poder de Javé, que, ao contrário dos ídolos pagãos, é de fato o Deus vivo e poderoso, senhor da natureza e presente nos acontecimentos da história. Tudo isso é verdade e continua sendo atual. O que importa, nesse caso, não é o que de fato aconteceu, e sim aquilo que o povo viu, e compreendeu. Mesmo que eles tenham, realmente, visto o sol parado no céu, isso não nos obriga a admitir a ocorrência do fenômeno cósmico correspondente. Também nas aparições de Fátima aconteceu um “milagre do sol”; e, para provar a intervenção de Deus, não é necessário que o astro-rei tenha realmente executado toda aquela dança no espaço. A multidão ali reunida pode ter tido simplesmente uma visão. O que importa é que Deus se manifestou daquela forma, e o povo creu...
(Setembro – 2004)
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