O último olhar dos Mártires
Jefferson Nóbrega
A espada o transpassa violentamente;
Mas sua face já não demonstra dor.
Olha fixamente para o oriente;
Onde foi erguida a cruz do senhor.[1]
A importância da oração ad orientem, tem sido um dos pontos fundamentais pelo qual os que lutam pela tradição tem clamado. Infelizmente, a modernidade causou a perda do verdadeiro sentido dessa orientação, a triste expressão das más línguas “de costa para o povo” acabou por criar um preconceito e fazer com que o real significado da oração ao oriente fosse esquecida. De fato, o tema pode até soar superficial diante de tantas outras prioridades que precisamos, como por exemplo, uma melhor tradução do Missal Romano, ou uma digna celebração litúrgica. Sei e admito que tais problemas são mais urgentes do que a orientação do sacerdote na missa, mas isto não quer dizer que seja menos importante.
Dessa forma expressa Jean Fournée sobre a oração ad orientem:
Porém, eis aqui que o Oriente é iluminado por um astro mais ardente que o sol. “Senhor, formastes no céu um sinal glorioso entre os demais, que cintila com uma claridade infinita”, assim se expressa um tropário bizantino nas Matinas de 14 de setembro, enquanto o Ocidente latino exclama: O Crux, splendidior cunctis astris! Para este sinal que do Oriente nos chamava às bem-aventuranças eternas devia se dirigir o último olhar dos mártires. Esta Cruz, a qual exaltaram Justino, Irineu, Efrém, Paulino de Nola e João Crisóstomo, não era o madeiro vergonhoso do Gólgota, mas o testemunho deslumbrante da glória de Cristo com a qual se iluminará o último amanhecer do cosmo. Esta Cruz salvífica aparecerá no céu, nos diz Santo Efrém, “como o cetro de Cristo, o grande Rei... superando o brilho do sol e precedendo a vinda do senhor de todas as coisas”. “Sinal triunfal!” exclama São João Crisóstomo, “mais resplandecente que o astro dos dias”![2]
O olhar de um martír
Ó Cruz, para os malditos sinal de reprovação;
Que para justos tornaste sinal de salvação.
É para vós que este cruzado olha e admira;
E “ad orientem” entrega sua vida
E a este Oriente Santo Estevão fitou
Quando a multidão de infiéis o apedrejou.
Perpétua e Felicidade, o nascente contemplaram;
E confiantes o martírio enfrentaram. [1]
Para os Cristãos primitivos a estrela que os Reis Magos perseguiram se fixaria no céu como a Cruz de Salvação:
“Esta estrela oriental, para os primeiros cristãos, vai se fixar no céu e converter-se na Cruz luminosa, sinal de glória e de salvação(...)Compreende-se porque os mártires dirigiam o olhar para o oriente(...)Assim estava dirigido o olhar de Santo Estevão enquanto o apedrejavam”.[3]
E assim encontramos exemplos de grandiosos Santos que voltaram à face para Deus no momento da morte. Estes olhavam para oriente onde viam o majestoso Signvm Crvcis (Sinal da Cruz), certeza que a morte nesse momento seria glória.
E com essa certeza Santa Perpétua e Felicidade voltadas para oriente evocam a Cruz “sinal luminoso da vitória”[5]
“Na Paixão das santas Perpétua e Felicidade se lê: coepimus ferri a quattuor angelis in orientem (Passio... XI,2-3) O vidimus lucem immensam da mesma Passio evoca a lux perpetua luceat eis da missa dos defuntos (testemunhado no séc. IX em uma antífona de comunhão dos Mártires do ofício romano). Esta luz imensa e eterna, na qual descansam as almas bem-aventuradas na contemplação de Deus, toma toda seu significado no contexto cultural da Antigüidade, na época em que o universo era concebido segundo o sistema de Ptolomeu. O que para nós não é mais que uma imagem, um símbolo, correspondia então a uma profunda crença. Se representava as almas atravessando "as esferas planetárias para chegar a essa luz superior a todos os mundos, na qual encontravam a perfeita beatitude" (CUMONT, Lux perpetua, p. 188 ). Acaso não era uma das missões do arcanjo São Miguel escoltá-las nessa viagem através dos espaços celestes e introduzi-las na luz santa (sed signifer sanctus Michael repraesentet eas in lucem sanctam)? Esta lux sancta, que São Basílio denomina luz supercósmica (Hexaem. II, 5; P.G. 29, 41), não deve nada, escreve Santo Ambrósio, nem ao sol, nem à lua, nem às estrelas: é a da única claridade divina: ...sed sola Dei fulgebit claritas (De bono mortis 12, 53)”.[4]
Dessa forma o olhar para o oriente simbolizava a entrega da vida por Cristo, e assim como no nascente a cruz foi erguida para que a morte fosse derrotada, no mesmo nascente estes Santos depositavam sua esperança de vitória.
São João Damasceno explica o significado desta tradição: “Não é por simplismo e nem por acaso que rezamos voltados para as regiões do oriente (...). Desde que Deus é luz inteligível (1Jo 1,5) e, na Escritura, Cristo é chamado o Sol de justiça (Ml 3,20) e o Oriente (Zc 3,8 da Septuaginta), é necessário dedicarmos o oriente a ele para render-lhe culto. A Escritura diz: ‘Ora, o Senhor Deus tinha plantado um jardim no Éden, do lado do oriente, e colocou nele o homem que havia criado’ (Gn 2,8). (...) Na busca da antiga terra natal e dirigindo-nos a ela, adoramos a Deus. Mesmo a tenda de Moisés tinha o véu e o propiciatório voltados para o oriente. E a tribo de Judá, visto que era a mais notável, acampou ao oriente (cf. Nm 2,3). No templo de Salomão, o pórtico do Senhor estava voltado para o Oriente (cf. Ez 44,1). Finalmente, o Senhor pregado na cruz olhava para o ocidente, então nos prostramos em sua direção, voltados para ele. Quando ele subiu aos céus, foi elevado para o oriente, e dessa forma os discípulos o adoraram, e assim ele retornará, do mesmo modo que eles o viram subir ao céu (cf. At 1,11), como o Senhor mesmo disse: ‘Porque, como o relâmpago parte do oriente e ilumina até o ocidente, assim será a volta do Filho do Homem’ (Mt 24,27). Esperando por ele, prostramo-nos voltados para o Oriente. Isto é uma tradição não escrita, derivada dos Apóstolos”. [6]
Baseado na mesma explicação de São João Damasceno Dom N. LE NOURRY expõe uma das razões de conveniência da orientação da oração: Cristo na cruz olhava para o ocidente, era pois normal que os cristãos ao contemplar a cruz se voltassem para o oriente.[7]
Dessa forma ao voltar à face para o leste contemplava-se a Cristo que como exclama São Cipriano “é o verdadeiro sol e a verdadeira luz”.
Ao oriente rumo ao martírio
E é para este destino que agora marchamos;
Intrépidos de espadas nas mãos avançamos;
Intrépidos de espadas nas mãos avançamos;
Que nossas vidas em vão não sejam ceifadas;
Mas que nosso sangue leve a libertação da terra sagrada.[1]
Toda essa admiração, respeito e veneração pelo local sagrado onde foi erguida a cruz do Senhor, também refletiu nas Cruzadas.
Os cruzados lutavam por amor, pela libertação da terra onde Cristo havia feito prodígios, terra essa onde o filho de Deus tinha nascido. Essa veneração pelos locais sagrados e o sofrimento por ver os infiéis profanando e destruindo a terra santa pode ser vista na pregação da Segunda Cruzada por São Bernardo de Claraval:
"A terra estremeceu (Sal.17,8) porque o Senhor do céu principiou a perder a terra que é muito sua. Muito sua, insisto, porquanto nela, durante mais de trinta anos, a palavra invisível do Pai se tornou visível, instruiu o povo, e como um homem conversou entre os homens (Bar. 3,38). Muito sua, por a ter glorificado com os seus milagres, consagrado com imeiras flores de sua gloriosa ressurreição. E agora, devido aos nossos pecados, os inimigos da Cruz ergueram o seu estandarte blasfemo, e destruíram com fogo e ferro a Terra Santa, Terra de Promissão! Em breve, a menos que encontrem forte oposição, irromperão na cidade do Deus dos vivos, para destruir os preciosos monumentos de nossa redenção e devastar os lugares sagrados, outrora avermelhados pelo sangue do Cordeiro Imaculado. Ai de nós! Ardem no profano desejo de invadir o próprio santuário da religião cristã, e violar o sepulcro, onde Cristo, que é a nossa vida (Col.3,4), por nós, dormiu o sono da morte Que fareis, "bravos cavaleiros? Que fareis, soldados cristãos? Deverei crer que lançareis aos cães o que é sagrado, e as pérolas aos porcos? (Mat. 7,6) Oh quantas multidões de pecadores, confessando as suas penas com arrependimento, se reconciliam com Deus naquela Terra Santa, desde que as espadas dos guerreiros cristãos repeliram de lá os loucos pagãos! Viu-o o pecador e se indignou; rangeu os cientes e consumiu-se (Sal. CXI,10).
Agitou os instrumentos de sua impiedade; e, se alguma vez lograr apoderar-se do Santo dos Santos, (que Deus nunca o permita), não tolereis que permaneça vestígio de sua passagem junto dos monumentos e lugares associados com a paixão de Jesus Cristo.
Que dizeis, irmãos? Se fosse anunciado que o inimigo invadiu as vossas cidades, violou os vossos lares, ultrajou vossas famílias e profanou vossas igrejas, qual de vós não pegaria em armas? Fareis menos pela honra de Jesus Cristo? Todos esses males, e outros ainda piores atingiram a sua família, da qual sois membros. O lar do Salvador foi perturbado pela espada dos sarracenos; os bárbaros destruíram a casa de Deus e dividiram entre si a sua herança.
Hesitareis em debelar semelhante mal em vingar tal perversidade? Suportareis que os infiéis contemplem em paz a extensa ruína que oneraram entre o povo cristão? Recordai que o seu triunfo será motivo de desgosto inconsolável para gerações futuras, e de desgraça perpétua para nós que o consentimos. E mais do que isso: o Deus dos Vivos encarregou-me de proclamar que se vingará de todos os que se recusem defendê-lo de seus inimigos. Às armas, pois! Que uma indignação sagrada vos anime ao combate, e que o grito do profeta vibre por toda a cristandade: "Maldito seja aquele que não ensangüentar a sua espada"(Jerem. XL VIII, 10).[8]
Quantos Santos e homens de honra atenderam a esse chamado. Todos diante do oriente voltavam seus olhares e suas espadas com a ansia de pisar e libertar a terra sagrada, e com um desejo incenssante de combater e se preciso morrer pela cruz de Cristo.
"...não quero ser coroado de ouro, onde Cristo foi coroado de espinhos...”, dizia Godofredo Bouillon recusando ser rei, pois tinha como objetivo apenas defender o Santo Sepulcro.
Era esta fé que fazia D. Afonso Henriques gritar para Cristo crucificado que lhe apareceu nos céus, no alvorecer, antes de vencer os mouros na batalha de Ourique: "Não a mim, Senhor, não a mim, que creio que podeis. Mas [aparece] a eles Senhor, a eles que não crêem"[9]
Para estes valorosos cruzados voltar-se ao oriente significava buscar a Cristo e lutar por sua Igreja. O oriente, portanto, era a representação do que havia de mais sagrado na sua fé, pois ali havia vivido o Senhor dos Senhores, ali ele foi crucificado e resssucitou. E para defender o Santo sepulcro, a Santa Cruz e libertar a Terra Santa eles entregaram suas vidas.
Versus Orientem: De frente para Deus
Voltados ao senhor o oriente vos ilumina
A terra treme as palavras exorcizam
Os demônios fogem ao odor do incenso
E a glória de Deus preenche seu templo.[1]
O altar é o centro da ação sagrada: sobre ele, no curso da celebração da Missa, repousa o “cordeiro imolado” do Apocalipse (5,6). Por isso Santa Hidelbranda de Bingen chama o altar de “a mesa dispensadora da vida” e acrescenta: “Quando o sacerdote... se aproxima do altar para celebrar os santos mistérios, um resplendor de luz aparece logo no céu. Os anjos descem, a luz rodeia o altar... e os espíritos celestes se inclinam à vista do serviço divino” .[10]
Tudo o que foi abordado até agora sobre a oração ad orientem nos trás diretamente a orientação do sacerdote na Santa Missa.
Se os mártires voltavam a face ao oriente durante seus sacrifícios, porque durante o maior dos sacrifícios deve-se voltar o rosto ao povo e ao ociedente?
Sobre o assunto o Padre Manfred Hauke explica:
A preeminência do sacrifício pela descrição da Santa Missa tem tembém suas conseqüências para a orientação da oração. Ao sacrifício corresponde o voltar-se para Deus por parte do celebrante e de toda a assembléia litúrgica. Quando o sacerdote fala com Deus, não faz sentido pedir que ele se volte em direção à assembléia. É melhor, se o celebrante se volta junto com toda a assembléia para a cruz e para o altar, possivelmente na direção do oriente. O oriente, o sol nascente, está no lugar de Cristo ressurrecto cujo retorno esperamos no fim dos tempos. Um voltar-se ao povo, pelo contrário, é conveniente para a proclamação da Palavra de Deus e pela comunicação da graça nas saudações, na bênção e na distribuição da Comunhão. Esta orientação é possível também no rito de Paulo VI, mas as disposições do rito antigo parecem mais propícias a este fim, colocando no centro a cruz, o altar e o próprio Senhor no Tabernáculo.[11]
Portanto, o que falta para os opositores é simplesmente a fé que levava os mártires a entregarem suas vidas pela Igreja. A modernidade não mudou apenas os altares e a posição do sacerdote[12], mudou a fé e a coragem Católica. Preferiram voltar suas faces para os homens e dar as costas a Deus.
Epílogo
Admirando o sol nascente
Sabia que naquela direção alguém havia sofrido verdadeiramente
Que no alto do monte havia padecido um inocente.
A morte nesse momento é glória,
Sua vida pelo evangelho é vitória
Seu nome será parte da história
Sua coragem para sempre memória[1]
Sua vida pelo evangelho é vitória
Seu nome será parte da história
Sua coragem para sempre memória[1]
Tudo que foi abordado mostra o quão importante é voltar-se ao oriente que podemos traduzir como voltar-se a Deus.
Santo Agostinho explica muito bem sobre o assunto dizendo:
“Quando nos levantamos para orar, voltamo-nos para o Oriente (ad orientem convertimur) de onde o céu se levanta. Não que Deus só se encontre ali, ou que tenha abandonado as outras regiões da terra... mas para exortar o espírito a se voltar para uma natureza superior, ou seja, a Deus” . [12]
Portanto, as más línguas que ainda insistem no termo “de costa para o povo” não compreenderam o verdadeiro sentido e a magnitude desse simbolismo. E para isso Mosenhor Klaus Gamber tem uma ótima resposta:
Aqui se pode evocar uma palavra de São Paulo. Consciente de que “todo o tempo que passamos no corpo é um exílio longe do Senhor. Andamos na fé e não na visão”, ele deseja estar ausente “deste corpo para ir habitar junto do Senhor” (ad Dominum) (2Cor 5,6-8). Assim, pois, voltar-se para o Senhor e olhar para o Oriente, para a Igreja primitiva era uma única e mesma coisa.[13]
Que possamos notar que ao oriente existe um brilho mais ofuscante que o sol que surge, existe uma esperança que jamais cessa, e existe uma fé, uma tradição que jamais passará.
“Aproximai-vos, vós os homens, levantai-vos com respeito e olhai para o Oriente” (Anáfora de São Basília)
E o oriente seus olhos miram
Enquanto a lâmina corta-lhe a vida
No rosto de dor o olhar brilha.
Enquanto a lâmina corta-lhe a vida
No rosto de dor o olhar brilha.
Eis o “fim” de um guerreiro de Cristo
Fitando a direção onde houve o maior dos sacrifícios
Oriente este para onde se voltava o último olhar dos mártires
De onde refletira a luz de Cristo em suas espadas no combate. [1]
Pax et bonvs!
[1]O último olhar dos mártires - Jefferson Nóbrega.
[2]La Misa cara a Dios – Jean Fournée P.g 6
[3]La Misa cara a Dios – Jean Fournée P.g 11.
[4]La Misa cara a Dios – Jean FournéeP.g 11 Rodapé .
[5]Como a proclama um tropário da liturgia bizantina de 14 de setembro.
[6]Texto acrescentado pelo tradutor na obra Voltados para o Senhor de Mons. Klaus Gamber. O texto é da Congregação para as Igrejas Orientais, Instrução para a aplicação das prescrições litúrgicas do Código de Cânones das Igrejas Orientais, 107 – disponível em : http://www.vatican.va/roman_
[7]A Missa de frente para Deus – Jean Fournée – Rodapé Pg 13
[8]J.F. Michaud, História das Cruzadas, ed. cit., vol.II – pp..235/236 e A. Lubby, S. Bernardo (O Negrito é meu). [9]Fedeli, Orlando - "A Cavalaria" MONTFORT Associação Cultural
[10] Voltados para o Senhor – Mons. Klaus Gamber Pg. 8
[11]Hauke, Manfred na coferência “A Santa Missa, Sacrifício da Nova Aliança”, pronunciada por ele no Congresso sobre o Motu Proprio realizado em Roma entre 16 e 18 de Settembro – disponível no Site da Assoc. Cultural Montfort (http://www.montfort.org.br/
Nóbrega, Jefferson – "O último olhar dos mártires" IN PRAELIO: