Terceiro projeto de lei dos "direitos humanos"
Autor: Dom Odilo P. Scherer
fonte: O Estadão de São Paulo
Os
"direitos humanos" estão sendo motivo de controvérsias, ultimamente, e
não é sem razão: algumas questões bem controvertidas estão querendo se
fazer passar por "direitos humanos". Embora não seja recente, esse
conceito emergiu e se afirmou no século 20; a humanidade tomou
consciência sempre mais clara sobre a dignidade humana, sobretudo
diante das aberrantes atrocidades cometidas contra pessoas e inteiros
povos por regimes totalitários. A Declaração Universal dos Direitos
Humanos, em dezembro de 1948, representou um marco histórico na
civilização. João Paulo II, no seu discurso às Nações Unidas em outubro
de 1979, definiu-a como "pedra miliar no caminho do progresso moral da
humanidade".
A Igreja Católica reconheceu no movimento que levou a sociedade a
identificar e proclamar os direitos humanos um dos esforços mais
relevantes da humanidade para responder, de modo eficaz, às exigências
decorrentes da dignidade humana (cf. Dignitatis Humanae 1). A
Declaração é um instrumento extraordinário para defender e promover
universalmente a dignidade da pessoa. De fato, os direitos não são
separáveis da dignidade da pessoa.
Infelizmente, porém, o respeito aos direitos humanos ainda não é um
fato geral e consumado; sua violação, mesmo grave, continua sendo
constatada diariamente; não é unânime a sua interpretação e, com
frequência, o teor ideológico de certos discursos leva a olhar com
desconfiança a própria questão dos direitos, com o risco de relegá-los
ao descrédito. Hoje há também certa pressão de grupos para fazer valer,
como direito humano universal, algo que é subjetivo e posição
ideológica de parte. Não é aceitável afirmar os próprios interesses, ou
supostos direitos, passando por cima da dignidade e dos direitos
fundamentais de outros.
Penso que seja necessário retomar uma reflexão serena e bem
fundamentada sobre a questão, para que os direitos humanos não sejam
desacreditados; isso abriria o caminho para um retrocesso preocupante
da civilização humana, com o risco de fazê-la embrenhar-se novamente na
barbárie. Alguns sinais já estão por aí, como o aumento da violência e
a indiferença diante dela, o exploração da prostituição como mercado
rentável, até com a pretensão de fazê-la reconhecer como profissão, uma
entre as tantas, enquanto é pura escravidão degradante; ou as propostas
de aborto, eutanásia e eugenia, por vezes envoltas em discursos
pseudo-humanitários, como fizeram regimes autoritários do passado, hoje
claramente identificados como bárbaros. É por aí que queremos enveredar?
Qual é o fundamento dos direitos humanos? O consenso da sociedade? A
posse de riquezas ou de poder? O poder do grupo reinante ou o poder
conferido pela posse de riquezas não é base segura nem critério
aceitável para a definição de direitos humanos fundamentais; o poder,
isso sim, deve estar a serviço do respeito aos legítimos direitos.
Certamente, o consenso da sociedade é importante, mas, por si só, não é
base segura para definir direitos humanos. Estes, mais que concordados
mediante um pacto, devem ser constatados e reconhecidos, como tais,
pela sã razão e pelo bom senso, mesmo sem receber a aprovação das
maiorias. Muito simples de exemplificar: o direito a existir e a viver
não depende da aprovação da maioria; ninguém de nós aceitaria que fosse
submetido a uma votação o nosso direito a viver... Da mesma forma, o
direito a respirar, a se alimentar, de ir e vir, à liberdade de
pensamento e de opinião, de aderir ou não a uma religião. Esses
direitos são primários, não são outorgados por outrem, nem pelo
conjunto da sociedade; pertencem à pessoa, por ser pessoa; são
inalienáveis e precisam ser, apenas, reconhecidos. A competência e o
dever de fazê-los reconhecer e respeitar é da autoridade constituída,
mas também é tarefa de toda a sociedade.
Já ensinava o papa João XXIII, na encíclica Pacem in Terris, que a
fonte última dos direitos humanos não é a vontade dos homens, nem o
poder do Estado ou dos poderes públicos, mas a natureza do próprio ser
humano e, enfim, Deus, seu Criador. Mais recentemente, Bento XVI, na
encíclica Caritas in Veritate, lembrou que o fundamento dos direitos
humanos não está apenas nas deliberações de uma assembleia de cidadãos;
neste caso, poderiam ser alterados a qualquer momento, dependendo das
convicções e da ideologia de quem está com a mão no poder; assim, os
direitos careceriam de referência objetiva e universal, ficando diluído
e sem eficácia na consciência dos cidadãos o dever de os reconhecer e
respeitar.
A raiz dos direitos humanos precisa ser buscada na dignidade
fundamental e originária de cada ser humano, membro da família humana;
tal dignidade, apreendida antes de tudo pela sã razão, é inerente a
cada pessoa, igual para todos. No horizonte do cristianismo, esse
fundamento natural dos direitos é destacado ainda mais com a afirmação
de fé de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus e que o
Filho de Deus uniu a si a nossa humanidade mediante seu nascimento
entre nós; isso deu ao ser humano uma dignidade incomparável; ele
também é chamado a viver como familiar e íntimo de Deus. E isso não
vale apenas para alguns, mas para todos, mesmo para aqueles que parecem
ter perdido ou desmerecido a sua humana dignidade.
Universalidade e indivisibilidade são dois traços distintivos e
inseparáveis dos direitos humanos, que também devem corresponder a uma
exigência inalienável da dignidade humana. Portanto, direitos humanos
não podem ser assimiláveis a bandeiras de luta ou interesses de grupos
particulares.
Dom Odilo P. Scherer é cardeal-arcebispo de São Paulo