A Inquisição e a era medieval
De 29 a 31 de outubro de 2000
realizou-se em Roma um Simpósio internacional sobre a densa temática da
Inquisição. Pronunciaram-se sobre o fato com objetividade científica
vários historiadores, cujos trabalhos foram posteriormente editados sob
o título “L’INQUISIZIONE", volume precioso pela riqueza dos temas
debatidos.
O problema "Inquisição" já foi
freqüentemente abordado em PR; ver 384/1994, pp. 214ss; 452/2000, pp.
2ss: 454 2000, pp. 120ss. Nas páginas subseqüentes consideraremos os
traços de mentalidade que inspiraram a Inquisição tais como são
apresentados pelos expositores da temática do Simpósio.
1. A mentalidade inspiradora
A Apresentação do tema do Simpósio é da
autoria do Cardeal Georges Cottier, que se refere à Exortação Apostólica
“Tertio Millennio Adveniente". Neste documento o Papa João Paulo II
pondera o tema "Inquisição" como sendo "um capitulo doloroso ao qual os
filhos da Igreja não podem deixar de voltar numa atitude de
arrependimento; com efeito, consentiram, principalmente em certas
épocas, em aplicar métodos de intolerância e até de violência ao serviço
da verdade" (n° 35).
Nesta passagem interessa salientar que,
segundo o Papa, o arrependimento toca aos filhos da Igreja, ficando a
Mãe Igreja avessa à culpa de seus filhos, pois é, conforme São Paulo, "a
Esposa de Cristo sem mancha nem ruga" (Ef 5, 25-27). A distinção entre
"Mãe Igreja" e "filhos da Igreja" corresponde à que Jacques Maritain
propõe entre "Pessoa" e "pessoal da Igreja"; quem peca, são os filhos ou
o pessoal da Igreja.
Pouco adiante o Papa acrescenta;
"Verdade é que, para julgar corretamente o passado, não nos podemos
dispensar de considerar atentamente os condicionamentos culturais da
respectiva época; com efeito, pelo influxo desses condicionamentos
muitos puderam, de boa fé (candidamente), pensar que para dar autêntico
testemunho da verdade era necessário reduzir ao silêncio, ou ao menos
marginalizar, a opinião alheia. Freqüentemente concorriam vários motivos
para a produção de um terreno favorável à intolerância, alimentando um
clima passional ao qual apenas grandes gênios verdadeiramente livres e
cheios de Deus conseguiam de certo modo escapar" (n° 35).
E quais seriam esses condicionamentos culturais?
Sejam enumerados os três seguintes:
a) Alta estima dos valores espirituais
A alma humana, alimentada pela fé é
chamada a participar da bem-aventurança do próprio Deus - verdade esta
que era grandemente apreciada... Ora a heresia deteriora a fé e,
segundo os antigos, é blasfêmia contra Deus e perigo de envenenamento
para a alma humana. São Tomás de Aquino (f 1274) levava esta concepção
ao ponto de dizer que a heresia é crime de blasfêmia, que o Antigo
Testamento punia com a pena capital,... considerada também crime de
lesa-majestade divina que o Direito Romano punia com a mesma pena. São
palavras do Santo Doutor:
"Os hereges podem licitamente ser
condenados à morte por um julgamento civil, pois blasfemam contra Deus e
observam uma falsa fé. Assim podem ser punidos com mais razão do que
aqueles que cometem o crime de lesa-majestade ou o de falsificação de
moeda" (II Sententiarum, dist. 13, questão 2, artigo 3c).
São Tomás fazia o paralelo entre a
lesa-majestade divina e a imperial (humana) porque vivia num regime de
Cristandade, que aspirava ao ideal da Cidade de Deus na terra ou à
teocracia. Como ele, deviam pensar muitos mestres e discípulos de
épocas passadas.
A esta nota cultural se associa a seguinte:
b) "Um Tribunal assistido"
Sob este título o Prof. Jean-Louis Biget
desenvolve considerações, mostrando que à Inquisição não podiam deixar
de estar ligados interesses políticos, pois nada na Idade Média (e
ainda posteriormente) era meramente leigo ou profano, dado o regime de
Cristandade:
"A Inquisição é sempre considerada uma
instituição da Igreja. Isto está certo, mas convém enfatizar uma
realidade fundamental, evidente, mas freqüentemente esquecida, a saber: a
Inquisição só podia atuar associada aos poderes leigos. Ela não
dispunha de poder material. Ela só podia incutir temor, se contasse com o
apoio dos príncipes e dos Governos. Em lugar nenhum os inquisidores
podiam prender alguém, assentar-se, julgar, mandar executar sua
sentença.... se não dispusessem da força armada e da assistência do
regime local, dos seus representantes e dos seus agentes.
Essa colaboração era tida como um dever
de Estado por parte dos detentores do poder temporal. Tal colaboração
era mais fácil na medida do interesse dos governantes na confiscação dos
bens dos condenados, que redundavam em favor do Estado em troca do
sustento ministrado aos inquisidores - sustento este que criava uma
forte dependência dos inquisidores em relação ao poder civil. Na
verdade, os gastos com os inquisidores eram elevados, como demonstram as
raras prestações de contas que foram conservadas.
Enfim é certo que a erradicação dos
comportamentos indesejados e o reforço da unidade da Igreja e de unidade
da fé serviu à unidade politica numa época em que o vínculo religioso
era a única garantia da coesão das populações" (Atas p. 75).
Estas reflexões dão a entender ainda
outro fato: com o passar do tempo, a Inquisição foi não somente
sustentada, mas foi também manipulada pelo poder do Estado atendendo a
interesses políticos: tenham-se em vista os casos dos Cavaleiros
Templários, vítimas da Inquisição manipulada pelo rei Filipe IV o Belo,
da França, em 1312, e o de S. Joana d'Arc, condenada por pressão das
autoridades inglesas, porque impedia a invasão da França por parte da
Inglaterra. Muito mais ainda foi manipulada a Inquisição na península
ibérica, principalmente na Espanha, onde os reis queriam unificar a
população eliminando judeus e árabes. Por causa da sua ingerência nos
processos inquisitoriais os monarcas espanhóis entraram mais de uma vez
em conflito com a Santa Sé; quando foi abolida no século XIX trazia o
título de "Inquisição Régia". Ver PR 504/ 2004, pp. 432; 403/1995, pp.
549.
c) Demônios e bruxo(a)s
Entre os parâmetros culturais dos
antigos, existe um que pode parecer especialmente estranho ao cidadão
contemporâneo, mas que motivou celeuma: a bruxaria.
Por "feiticeira" ou "bruxa" entendia-se,
naquela época, uma mulher manipulada em seu corpo (sexualmente) pelo
demônio. Admitia-se que o Maligno pudesse ter consorcio sexual com
mulheres: se fosse demonio masculino, seria chamado íncubo (de noite
copulava com mulheres, perturbando-lhes o sono e causando-lhes
pesadelos, como se dizia). Se fosse demônio feminino, era dito súcubo,
aquele que se deita por baixo, copulando com um homem e causando-lhe
pesadelos. Deste contato carnal nasceriam filhos... filhos enfeitiçados e
malvados sobre a terra!
Os medievais acreditavam na existência
de tais seres e tais fenômenos - o que, na verdade, é totalmente
impossível, pois o demônio (anjo mau) não tem sexo nem corporeidade.
Movidos por tal crença, os defensores da boa Ética, na Idade Média, não
podiam deixar de se insurgir com veemência contra tal procedimento;
era, para eles, um dever de consciência ao qual não se podiam furtar sem
que a consciência os acusasse gravemente.
Evidentemente em nossos dias nenhum
teólogo afirma que o demônio tem corpo e pode efetuar cópula sexual. É
espírito, independente de qualquer constituição somática. Os antigos,
porém, tiveram dificuldade de conceber um espírito puro, isento de
corporeidade (ainda que etérea ou sutil). Os estóicos imaginavam o
pneuma divino como algo de corpóreo a penetrar o mundo material. Os
judeus iam mais longe: admitiam que os anjos tivessem pecado sexualmente
com mulheres, dando ocasião ao dilúvio narrado em Gn 6-9; cf. Gn 6, 1s
(e a interpretação dada pela tradução grega dos LXX). Na Tradição
cristã, tal concepção esteve presente até o fim da Idade Média, como se
vê; nunca foi dogma de fé, mas apenas tese comum.
Compreende-se que quem abraçasse tal
pressuposto e admitisse a existência de íncubos e súcubos, reagisse
energicamente contra tão grande mal. Os medievais o faziam de boa fé,
dentro das categoriais de pensamento que lhes eram familiares e de cuja
validade não duvidavam. Os historiadores que hoje consideram esse
passado, tendem a julgá-lo através das categorias de pensamento
modernas, exigindo dos antigos o que não sabiam, nem podiam dar.
Aos 5 de dezembro de 1484 o Papa
Inocêncio VIII assinou uma Bula que condenava a prática da bruxaria,
como se depreende do texto abaixo:
"Inocêncio Bispo, Servo dos Servos de Deus, para a perpétua recordação dos fatos...
Recentemente chegou aos nossos ouvidos,
não sem nos molestar profundamente, a notícia de que em territórios da
Alemanha Setentrional (províncias da Mogúncia, Colônia, Tréviris) assim
como nas províncias, cidades, terras e nos locais de Salzburg e Bremen,
várias pessoas de ambos os sexos, esquecidas de sua salvação e desviadas
da fé católica têm tido relações com demônios íncubos e súcubos e
mediante encantamentos, canções renegam sacrílegamente a fé do seu
Batismo... por instigação do inimigo do gênero humano...".
Aliás já aos 19 de abril de 1080 o Papa
Gregório VII dirigia uma carta ao rei Hakon da Dinamarca em que
condenava prática semelhante e a bruxaria existente naquele país,
conforme o Prof. Gustav Henningsen, à página 595 das Atas.
Vê-se assim quão antiga e persistente
foi a crença na possibilidade de cópula carnal dos demônios com seres
humanos. Tal temática será mais amplamente explanada no Apêndice deste
artigo.
A propósito do número de pessoas
condenadas pela Inquisição há quem fale de milhares ou mesmo milhões de
vítimas, dando largas à fantasia sem citar documentação correspondente.
Na verdade, não é possível avaliar o total de execuções perpetradas
pela Inquisição, pois faltam estatísticas e registros que dêem uma
noção fiel dos acontecimentos. As próprias Atas do Simpósio são sóbrias
a respeito; um vislumbre da história é oferecido pelo Prof. Gustav
Henningsen à p. 577ss nos seguintes termos:
"A fim de obter uma idéia mais exata da
participação do Santo Ofício na caça medieval às bruxas, examinei a
relação de processos feita pelo Prof. Richard Kieckhefer e pude
averiguar que os processos de bruxaria propriamente dita estão
repartidos entre tribunais civis, episcopais e inquisitoriais. De um
total de mil causas. 63% foram julgadas pelas autoridades civis, 17% por
tribunais episcopais, ao passo que 20% tocaram à Inquisição.
Quase a metade dos 200 processos por
bruxaria ficaram aos cuidados de dois inquisidores alemães: Jacob
Sprenger (1436-1495) e Heinrich Institores (1432-1492). Em dado momento a
sua fanática perseguição às bruxas no sul da Alemanha provocou a
oposição das autoridades civis e eclesiásticas. Os dois inquisidores ,
porém, apelaram para o Papa Inocêncio VIII, que respondeu com a citada
bula "Summis Desiderantes Affectibus", de 5 de dezembro de 1484, bula na
qual enumera os malefícios causados pelas bruxas: "matam a criança no
ventre de sua mãe, fazem o mesmo com o feto do gado, extinguem a
fertilidade dos campos, estragam os frutos da videira e de outras
árvores frutíferas, prejudicam as plantações de trigo e outros cereais,
molestam homens e mulheres com espantosas doenças internas e externas,
impedem os homens de copular e as mulheres de conceber, já que marido e
mulher não se reconhecem mais".
A bula papal teve como resultado fazer que o povo desse seu apoio à Igreja no combate a bruxaria.
A minuciosa consideração do passado sugere uma reflexão sobre o presente e o futuro da Igreja.
2. O olhar se volta do passado para o presente e o futuro
O Cardeal Georges Cottier, seguindo o
traçado da Exortação Apostólica "Tertio Millennio Adveniente", propõe
uma lição do passado para o presente e o futuro da Igreja assim
formulada por João Paulo II:
"Dessas atitudes dolorosas do passado
depreende-se uma lição para o futuro, lição que deve incitar todo
cristão a observar a regra de ouro definida pelo Concílio: 'A verdade só
se impõe pela força da própria verdade, que penetra o espírito com
suavidade e não menos poder'" (n° 8).
"Por fim, o passado nos convida a um
sério exame de consciência... Os cristãos devem colocar-se humildemente
na presença do Senhor para se interrogar sobre a responsabilidade que
lhes toca frente aos males do nosso tempo" (n° 36).
O Papa João Paulo II voltou mais
explicitamente a este ponto na sua bula sobre o Mistério da Encarnação,
datada de 29 de novembro de 1998:
"A história da igreja é uma história de
santidade. O Novo Testamento sublinha esta característica dos
batizados: são "santos" na medida em que, separados do mundo enquanto
sujeito ao Maligno, se consagram a prestar o culto ao único e
verdadeiro Deus: de fato, esta santidade manifesta-se nas vidas de
tantos Santos e Beatos reconhecidos pela Igreja, mas também na vida de
uma multidão imensa de mulheres e homens desconhecidos, cujo número é
impossível calcular (cf. Ap 7, 9). A sua vida atesta a verdade do
Evangelho, oferecendo ao mundo o sinal visível de que a perfeição é
possível. No entanto, é forçoso reconhecer que a história registra
também numerosos episódios que constituem um contra-testemunho para o
cristianismo. Por causa daquele vinculo que nos une uns aos outros
dentro do Corpo místico, todos nós, embora não tendo responsabilidade
pessoal por isso e sem nos substituirmos ao juízo de Deus - o único que
conhece os corações -, carregamos o peso dos erros e culpas de quem nos
precedeu. Mas, também nós, filhos da Igreja, pecamos, tendo impedido à
Esposa de Cristo de resplandecer em toda a beleza do seu rosto. O nosso
pecado estorvou a ação do Espírito no coração de muitas pessoas. A nossa
pouca fé fez cair na indiferença e afastou muitos de um autêntico
encontro com Cristo".
Em suma, é de grande valor a coletânea
de estudos que acaba de ser sumariamente apresentada com a seguinte
sinalação biblioteconômica: L’INQUISIZIONE: Atti Del Simposio
Internazionale, Città dei Vaticano 29 a 31 ottobre 2000, a cura de
Agostino Borromeo. - Coleção "Studi e Te st i" n° 417, edição da
Biblioteca Apostólica Vaticana 2003.
Fonte:
Revista Pergunte e Responderemos nº 523 / Janeiro de 2006.