Sola Scriptura
Se a doutrina de que toda a verdade está na Bíblia é correta, ela mesma deve estar em algum livro da Sagrada Escritura. É uma conclusão lógica. Logo, a grande questão é: onde, na Escritura, está contida tal afirmação? Para demonstrar mais ainda o equívoco dessa doutrina, analisemos as principais dúvidas levantadas a partir de textos bíblicos que segundo os solascripturistas provariam a Sola Scriptura. Antes de mais nada, convém salientar que nenhum dos textos utilizados pelos solascripturistas dizem explícita ou ao menos implicitamente ser somente a Escritura a única regra dos cristãos. O que eles fazem é tão somente exaltar a Escritura, não enunciar sua exclusividade.
Analisemos tais textos e comprovemos:
1ª dúvida: “Toda a Escritura é inspirada por Deus, e útil para ensinar, para repreender, para corrigir e para formar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e equipado para toda boa obra.” (2 Tm 3,16).
Resposta: Esse texto é inclusive o mais citado. Notemos, porém, antes de qualquer coisa, que a passagem aqui afirma apenas a inspiração divina da Bíblia – o que aceitamos plenamente! No entanto, ela não diz que somente a Escritura é regra de fé. Assim, ao afirmarmos que “Fulano é inteligente” não estamos dizendo que “Só Fulano é inteligente.” Logo, o texto escriturístico referido não favorece a pretensão solascripturista. Defender a Sola Scriptura a partir desses versos é extrapolar para afirmações ausentes do texto. Se olharmos o contexto dessa passagem, somente em 2º Timóteo, S. Paulo cita a tradição oral três vezes (1,13-14; 2,2 e 3,14). E para entendermos melhor o caso, comparemos esse texto com outro do mesmo apóstolo, pois ele esclarecerá melhor o assunto: “A uns ele constituiu apóstolos; a outros, profetas; a outros, evangelistas, pastores, doutores, para o aperfeiçoamento dos cristãos, para o desempenho da tarefa que visa à construção do corpo de Cristo, até que todos tenhamos chegado à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, até atingirmos o estado de homem feito, a estatura da maturidade de Cristo. Para que não continuemos crianças ao sabor das ondas, agitados por qualquer sopro de doutrina, ao capricho da malignidade dos homens e de seus artifícios enganadores. Mas, pela prática sincera da caridade, cresçamos em todos os sentidos, naquele que é a cabeça, Cristo.” (Efésios 4,11-15). Como se vê, se 2º Timóteo 3 provasse a Sola Scriptura, pelo mesmo critério, Efésios 4 provaria a suficiência do Magistério da Igreja (representado aqui pelos pastores, professores, etc.) para o aperfeiçoamento dos cristãos. Em Ef 4,11-15 se diz que os cristãos são ensinados, edificados, trazidos à unidade e ao estado de homens feitos na maturidade de Cristo, e protegidos da confusão doutrinal por meio do Magistério da Igreja. Isso é uma afirmação muito mais forte do aperfeiçoamento dos homens do que 2º Timóteo 3, 16.17, mas aqui a Escritura não é citada como fonte de aperfeiçoamento. Concluiremos, por isso, que o Magistério da Igreja é a única fonte de fé? Excluiremos a Escritura dessa fonte de aperfeiçoamento? É claro que não!
Veja também a carta de S. Tiago 1, 4: "Mas é preciso que a paciência efetue a sua obra, a fim de serdes perfeitos e íntegros, sem fraqueza alguma." Esse texto também é mais explícito do que 2 Tm 3, 16.17, no entanto, ele não menciona a Escritura. Diremos, então, que a paciência é a única a tornar o homem perfeito, excluindo-se aí a Escritura? Lógico que não. Mas se todos os elementos extrabíblicos estivissem excluídos de 2º Timóteo, pelo mesmo raciocínio, seríamos levados a concluir que a Escritura estaria excluída em Efésios 4, 11-15 e em S. Tiago 1, 1-4, já que aqui ela não é citada. Para confirmar mais ainda isso, veja mais um texto, com o qual, se seguíssermos o argumento solascripturista, seríamos forçados a rejeitar a própria Escritura e ficarmos apenas com a Tradição; e isso seria um absurdo, claro. Trata-se do texto da segunda carta de São João que diz: "Tenho muitas outras coisas para escrever-vos, porém, não quero fazê-lo por tinta e papel, pois espero ir até vós e falar-lhes face a face, para que vosso gozo seja completo" (2 João 1.12). Nessa passagem, explicitamente, o após-tolo diz que aquilo que ele dirá oralmente será o gozo completo de seus leitores. Está S. João dizendo, por causa disso, que apenas suas palavras orais são capazes de gerar gozo, excluindo-se a Escritura?
Não acha, portanto, mais razoável admitir, com os grandes especialistas em Bíblia, que a ausência de um ou mais elementos em um texto não significa que devam ser excluídos? Não se vê que o ensino da Escritura é por partes, ou seja, a Bíblia não diz tudo de uma vez? Não dá para se perceber que um texto completa o outro, e não, exclui o outro? Como é que num texto em que se lê TODA a Escritura, podemos ver SOMENTE a Escritura? Por acaso, o pronome toda é sinônimo do advérbio somente?
Não adianta objetar com a palavra útil ("ophelimos" em grego), pois nada ela prova. Um martelo é útil para fixar pregos, inclusive é o meio normal de fixá-los, porém, não quer dizer que todos os pregos só podem ser fixados por martelos. Semelhantemente a Escritura é útil para várias coisas, entretanto, não quer dizer que todas as coisas devam ser conhecidas apenas por ela. Beber água também é útil à vida, mas isso não quer dizer que ela seja a única que nos manterá vivos. A comida, por exemplo, também é necessária à vida.
Quanto às palavras perfeito e preparado também em nada favorece essa doutrina. O fato de a Escritura dizer que ela torna o homem perfeito e preparado para toda boa obra, de fato, não insinua a Sola Scriptura, mas ao contrário pressupõe a existência de outros elementos necessários. Assim, quando dizemos, por exemplo, que um escoteiro possui todo o equipa-mento necessário para a sua exploração, com exceção do cantil, e vai até uma loja de material de camping e o compra, então poderá afirmar que "agora está completo, pronto para a sua aventura"; só que há um detalhe: isto não significa que o cantil foi o único equipamento de que ele necessitava para estar pronto; na verdade, o cantil foi somente a última peça do equipa-mento. A certeza de que estava pronto pressupunha que ele já tinha todo o resto do equipa-mento necessário. Da mesma forma, a afirmação bíblica de que ela torna o homem de Deus perfeito também pressupõe que este homem de Deus detém alguns outros artigos pertencentes à doutrina, como por exemplo, a Tradição oral dos apóstolos.
E mesmo quando uma pessoa adquire todo o equipamento necessário de uma mesma loja, esta necessariamente não ensina como tal equipamento deve ser usado. Por isso precisa ser instruído, para saber como usá-lo. Novamente exemplificando, o fato de uma pessoa possuir todo o equipamento necessário para sobreviver numa selva ou suportar uma longa caminhada não significa que saiba usá-lo. Assim, ainda que a Escritura forneça a alguém todo o conhecimento básico para a salvação, ela pode ser tão obscura em certos pontos, como de fato o é, que torna necessário o uso da Tradição Apostólica para se chegar a uma correta interpretação. Portanto, ainda que a Bíblia ofereça toda a base necessária para a salvação, ela não nos ensina todos os detalhes.
Além disso, Paulo utiliza sempre este tipo de linguagem sobre outras coisas. Com efeito, em toda essa carta ele usa a mesma frase. Em 2,21, por exemplo, ele escreve “...Quem, portanto, se conservar puro e isento dessas doutrinas, será um utensílio nobre, santificado, útil ao seu possuidor, preparado para toda boa obra”. No contexto, S. Paulo está falando sobre a santifcação, e a libertação dos desejos da juventude (v. 22). Está com isso dizendo que a santificação é a única coisa que irá prepará-lo? Podemos afirmar que o apóstolo não necessitava de nada mais para se preparar a não ser a santificação? Então está excluída aí a Escritura?
Além de tudo isso, se analisarmos com atenção o trecho citado, notaremos que ele está fora do contexto. Em toda esta epístola Paulo fala sobre as várias coisas necessárias para formar o cristão. No contexto imediato ele escreve, no versículo 10: “...mas você tem seguido cuidadosamente minha doutrina, modo de vida, objetivo, paciência, amor, perseverança...”. Ele não diz no versículo 10 que a única fonte de doutrina é a Escritura! É óbvio que o modo como Timóteo primeiramente recebeu a doutrina de Paulo foi pelo seu estilo de vida e pelo ensino oral. No verso 14 ele diz para perseverar no que a Timóteo foi confiado. Então, quando chegamos aos versículos 15-17, a conclusão, no que diz respeito a estar devidamente preparado para qualquer boa obra, inclui esta Tradição oral explicada no versículo 10. Este é o contexto que explica os versículos 15 a 17.
Leiamos os versículos precedentes ao texto citado para isso ficar ainda mais claro: "14. E tu (Timóteo), permaneça fiel ao que tens aprendido e de que estás firmemente convencido, sabendo de quem o aprendeste. 15. E que desde a infância conheces as Sagradas Escrituras, que podem dar-te a sabedoria que leva à salvação mediante a fé em Cristo Jesus. 16. Toda Escritura é inspirada por Deus e é útil para ensinar, para convencer, para corrigir e para educar na justiça, 17. assim o homem de Deus pode ser perfeito e preparado para toda boa obra". Como se vê, S. Paulo insta a Timóteo a permanecer fiel àquilo que está firmemente convencido, citando dois fundamentos para isso: 1. Timóteo sabe de quem aprendeu tudo isso: através do ensino oral do próprio apóstolo. 2. Desde a infância, Timóteo se familiarizou com as Sagradas Escrituras, constituindo esta o segundo fundamento para a sua crença. Desse modo, em vez de 2 Tm 3,14-17 defender a Sola Scriptura, nos aponta na realidade duas regras de fé: a Tradição apostólica e a Santa Escritura. Portanto, quando os solascripturistas citam os versos 16 e 17, estão isolando a última parte de uma dupla afirmação de regra de fé: a Tradição e a Bíblia, o que contradiz a Sola Scriptura.
Ainda: a que Escritura se referiu o apóstolo? Paulo morreu mais ou menos em 67 dC, de modo que 2º Timóteo foi escrito antes desse ano. Sendo assim, não existia o NT na época de 2Tm! Muito menos durante sua infância (período a que se refere o apóstolo). Também sabemos que o NT não existiu por centenas de anos após a redação dessa carta. A única Escritura disponível para S. Paulo era o AT. Logo, se esse texto favorece a exclusividade da Escritura, na realidade, favorece a exclusividade do AT. Assim, ninguém pode usar este versículo para justificar a Sola Scriptura, a não ser rejeitando todo o NT.
Outro detalhe importante: A única Escritura disponível naquele tempo era o AT hebra-co, como também sua tradução grega, a chamada Septuaginta. Isso leva todo protestante a ter que aceitar os livros "deuterocanônicos", que estavam na Septuaginta grega, usada pelos judeus de língua grega, inclusive S. Paulo, e que é a mesma versão da Igreja Católica (Sabemos que das 350 citações que o NT faz do AT, 300 foram feitas da septuaginta.). Já que estas duas traduções eram as únicas disponíveis para o apóstolo e ele disse que toda Escritura era inspirada por Deus, então ele está incluindo também os sete livros excluídos da Bíblia protestante, que estavam inclusos na Septuaginta grega. Sendo assim, os deuterocanônicos deveriam ser respeitados, até porque como exige o princípio da Sola Scriptura, eles são citados centenas de vezes na Bíblia.
Um último detalhe: como Paulo falou que toda a Escritura é inspirada, então a afirmação deve incluir todos os versos que até mesmo mencionam a Tradição, como, por exemplo, 2 Ts 2, 14.15.
O que S. Paulo, na realidade, está dizendo aqui em 2 Tm 3,16 é que a Escritura é real-mente inspirada por Deus, e que por ser inspirada é útil para preparar-nos para toda boa obra. No entanto, isso não exclui outros itens. No contexto imediato (vv.10-14) em relação à salvação, assim como a áreas de desenvolvimento espiritual, o apóstolo apresenta os vários outros itens que nos preparam, incluindo a Tradição oral. O apóstolo apresenta as Escrituras apenas como uma dessas várias peças que nos preparam, não a única.
2ª dúvida: Para provar ou defender a verdade, Jesus sempre usou as Escrituras e somente elas. (Mt 4,1-11). Nunca apelou para fontes extrabíblicas. A única vez que Jesus mencionou a tradição oral dos judeus foi para condená-la. (Mc 7, 7-13) Ele simplesmente mandava as pessoas lerem. Mc 12,24; Mt 12, 3.5; Mt 21; 42; Lc 10, 26; 20.17; Jo 5, 39. Os cristãos primitivos também usavam somente as Escrituras para determinar a verdade. Veja, por exemplo: Atos 17, 2.11.28. No caso dos bereanos, notemos que eles foram direto nas Escrituras para determinar a verdade final. A Tradição oral não tem valor sem o testemunho das sagradas Escrituras! Vemos ainda que Paulo não censurou os bereanos, antes foram elogiados por Lucas como "mais nobres" do que os outros por aderirem ao princípio da Sola Scriptura.
Resposta: Inúmeras vezes, Jesus e os primeiros cristãos citaram as Escrituras, isso não é nenhuma novidade, mas daí querer concluir que eles só aceitavam a Escritura como autoridade é extrapolar para afirmação que não consta nem ao menos implicitamente na Bíblia. Embo-ra Jesus e os primeiros cristãos tenham citado as Escrituras isso nem de longe nos conduz à Sola Scriptura, primeiro porque pelo termo "Escrituras", todos eles entendiam algo quase totalmente diferente da Bíblia que temos hoje. Para Jesus e os primeiros cristãos as Escrituras compreendiam, por exemplo, todos os livros deuterocanônicos (ausentes da Bíblia protes-tante); alguns livros considerados apócrifos (estando, igualmente, ausentes das Bíblias protes-tantes): o Livro de Esdras I, Macabeus III e IV, Odes e os Salmos de Salomão); além disso, ela não continha também os livros do NT. Por isso, citar trechos do NT em que Jesus e os primeiros cristãos citam o AT prova apenas que o AT possui autoridade doutrinária, não que seja prova da "Sola Scriptura", uma vez que Jesus nem seus primeiros discípulos defenderam o Solo Antigo Testamento. E é impossível que Jesus e seus pimeiros discípulos ensinassem o Solo Antigo Testamento, pois o AT não foi suficiente para ensinar sobre a Nova Aliança. Ou foi? Não acha que o próprio fato de os apóstolos terem que escrever novos livros para demonstrar que Jesus é o Cristo, por si só já é o suficiente para provar a insuficiência do AT para demonstrar essa verdade?
Segundo, porque é uma tremenda inverdade dizer que Jesus e seus primeiros discípulos nunca apelaram para fontes extrabíblicas e que usaram somente as Escrituras. Várias vezes, Jesus e os cristãos primitivos apelaram, por exemplo, para sua própria autoridade, mesmo que ela se chocasse com a letra das Escrituras. Veja-se, por exemplo, o texto de Mateus 5, 21.22.27.28.33.34.38.39.43.44, no qual, após dizer “Ouvistes o que foi dito...”, referindo-se às Escrituras, Ele acrescenta: “Eu, porém, vos digo...”. O que claramente demonstra a sua autoridade. Se Jesus fosse solascripturista com certeza não apelaria para sua autoridade, mas tão somente para a da Escritura. Os primeiros cristãos, semelhantemente, pois várias vezes os vemos impondo sua autoridade. Basta vermos, por exemplo, a decisão do Concílio de Jerusalém em At 15, 28.29 e 16, 4. Além disso, vemos inúmeras vezes os apóstolos fazendo afirmações que se chocam com a letra do AT. Se os primeiros cristãos fossem realmente solascripturistas não teriam proposto novas normas ausentes e até contrárias a muitas do AT. No AT eles não podiam, por exemplo, demonstrar nenhuma passagem que provasse que a lei antiga já ultrapassara e que surgira a nova, como afirmaram inúmeras vezes (Hb 8, 13, por exemplo). Onde citariam também no AT que as leis citadas nos textos de Ex 23,10-11; 35,1-3; Lev 11,1-47; 17,10-14; 19,19. 23-26; 20,9-27; 24,10-23; 25,3-5, por exemplo, seriam abolidas? Onde ainda poderiam provar que a circuncisão seria abolida? Em Gálatas 6, 15, por exemplo, Paulo não se choca com a letra do AT que afirmava a necessidade da circuncisão? Como ele faria isso, se sua base fosse unicamente a Escritura e essa mesma Escritura nunca afirmara a abolição da circuncisão? Como também os apóstolos e seus discípulos teriam escrito o NT, se no antigo recomenda-se nada acrescentar nem tirar (Deut 4, 2; 12, 32; Jos 1, 7.8)?
Várias expressões, como já vimos, são citadas no NT, mas não constam no AT e nem mesmo nos Evangelhos (Veja Mt 2,23; At 20, 35; 2Tm 3, 8; Jd 9). Como podem, então, os solascripturistas alegarem que os cristãos primitivos só usavam as Escrituras? Não fica claro o absurdo dessa afirmação?
Quanto ao fato de dizerem que Jesus condenou o uso da Tradição em Mc 7,9 é outra ilusão. Se isso fosse verdade S. Paulo não nos recomendaria também guardarmos o ensino oral dos apóstolos como já vimos. O problema demonstrado aqui é o fato dos Fariseus ensinarem informalmente sua própria tradição em vez da Tradição que foi comunicada desde Abraão até os Profetas (Exatamente como fazem hoje os solascripturistas, cada um pregando suas próprias tradições). Se Jesus condenasse as tradições formais, Ele não teria dito ao povo que ouvisse os fariseus quando estes ensinassem na Cadeira de Moisés, ou seja, ensinassem for-malmente como legítimos sucessores de Moisés (cf. Mt 23,2). Cristo, então, condena as tradições informais, não as formais. Ainda mais: o fato de Cristo ter condenado as tradições farisaicas isso não significa dizer que ele rejeitava as tradições como tais. Ele rejeitava a "tradição" humana, não a tradição divina. O termo grego usado aí para "tradição" é o mesmo que aparece em 2 Tes 2, 15 e 3,6 "paradosin", e como se vê, em Marcos ela significa algo negativo; em Paulo, ela significa algo positivo.
Quanto ao caso dos bereanos, notemos que não foi apenas o testemunho da Escritura que os levou a abraçar a fé cristã. Ao contrário, se fossem apenas pelas Escrituras, eles rejeitariam, e não aceitariam, o ensino dos apóstolos, pois muitos ensinos apostólicos não tinham apoio no AT, como inclusive já vimos. Logo, esse argumento não procede. Se lermos o contexto, veremos que o texto diz algo importantíssimo, que esclarecerá definitivamente a passagem. Vejamos: “Estes (os bereanos) eram mais nobres do que os de Tessalônica e receberam a palavra com ansioso desejo, indagando todos os dias, nas Escrituras, se estas coisas eram assim.” (At 17, 11). Como se vê, o texto não elogia os bereanos apenas por consultarem as Escrituras, mas antes por “receberem a palavra” oral dos apóstolos. Logo, eles não eram adeptos da Sola Scriptura, pois se fossem, rejeitariam o testemunho de Paulo, “E este Cristo é Jesus que vos anuncio.” (verso 3) ), que não constava nas Escrituras. Embora apoiando-se nas palavra escrita, conforme os primeiros três versículos desse capítulo de Atos, Paulo logo depois mudou o caminho do argumento das Escrituras para o seu próprio testemunho “E este Cristo é Jesus que vos anuncio.” A doutrina de que Jesus é o Cristo trazida, por ele, não se encontrava nas Escrituras, embora se harmonizasse com elas, no entanto, os bereanos a aceitaram, tão somente porque confiaram no testemunho dos apóstolos.
Quanto ao fato deles consultarem as Escrituras para certificarem-se da autenticidade das palavras dos apóstolos, também não favorece nem a Sola Scriptura nem o livre-exame, pois quando os bereanos conferiram nas Escrituras se era verdadeira a doutrina de S. Paulo, comportaram-se como qualquer não-crente que para saber ou não se deve abraçar a fé cristã faria. Repetimos: se os bereanos fossem solascripturistas, colocariam, como vimos, S. Paulo em maus lençóis, pois o apóstolo não poderia provar muitos ensinos dele pela Escritura que possuía.
Conclusão: o caso dos bereanos em vez de demonstrar a Sola Scriptura, mostra é a autoridade da Escritura ao lado da autoridade da Igreja. O que contraria a Sola Scriptura.
3ª dúvida: Em Jo 5,39, Cristo diz: ”Examinais as Escrituras....” Isso é Sola Scriptura.
Resposta: Vendo, porém, o contexto, rapidamente notamos a falha nessa objeção. A simples observação do versículo seguinte, pois o versículo foi citado fora do contexto, já esclarece tudo. Vejamos o versículo completo, mais o versículo 40: “Examinais as Escrituras, julgando encontrar nelas a vida eterna. Pois bem! São elas mesmas que dão testemunho de mim. E vós não quereis vir a mim para que tenhais a vida.” Pelas palavras em negrito, percebemos que Cristo está falando com descrentes, não com todos os cristãos. Conforme o contexto, Cristo está pretendendo demonstrar a sua divindade aos judeus, com quem Ele está conversando. Para isso, recorre a três testemunhos: o de João Batista (versículos 32 a 35); depois afirma que tem um testemunho maior que o de João: suas próprias obras (versículos 37 e 38). Finalmente, recorre ao testemunho das Escrituras (versículos 39 e 40), já que os judeus nelas eram entendidos. Veja logo que Cristo citou duas autoridades alheias às Escrituras então existentes: o testemunho de João e o de suas obras, para depois citar o das Escrituras. Donde fica excluída a Sola Scriptura. Além disso, a expressão inicial não consiste numa ordem para examinarmos as Escrituras, pois o texto quer apenas dizer que os judeus, que criam nas Escrituras, deveriam lê-las melhor para constatar que a divindade de Cristo era aí demonstrada. Obviamente Cristo está reconhecendo aí a autoridade das Escrituras, mas a sua exclusividade é coisa impossível de aí ser comprovada. Logo o texto não favorece a Sola Scriptura.
Outro detalhe: O texto demonstra explicitamente que a leitura particular das Escrituras não foi suficiente para fazer os judeus entenderem a divindade de Cristo. O que depõe contra o livre exame. Além disso, se esse texto provasse a Sola Scriptura, provaria realmente o Solo Antigo Testamento.
Como Cristo, a Igreja pode e deve hoje usar esse mesmo argumento para os solascripturistas: vocês examinam as Escrituras, julgando ter nelas a vida eterna. Pois bem! São elas que dão testemunho de mim.
4ª dúvida: Em Jo 20,30, o Evangelista diz: "Fez Jesus, na presença de seus discípulos, ainda muitos outros milagres, que não estão escritos neste livro. Mas, estes foram escritos para que creais que Jesus é o Cristo, o filho de Deus e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome." Os solascripturistas entendem que, ainda que Jesus tenha feito muitas [outras] coisas, somente as que se encontram na Biblia são necessárias.
Resposta: Tudo isso é totalmente falso. Inicialmente, estaríamos nos referindo apenas ao evangelho de S. João. Então ficaria de fora coisas importantes como o Pai Nosso (Mateus e Lucas), a história da infância de Jesus (Mateus e Lucas), a última ceia com pão e vinho (os sinóticos), o sermão da montanha (Mateus) e outros pontos mais. Este versículo não está dizendo que o que está ali basta para fazermos tratados doutrinários, mas tão somente tentando mostrar para os judeus que Jesus é o Messias. Só que saber somente isso não nos dará a salvação, pois até os demônios sabem que Jesus é o Messias (Mc 5, 7), nem por isso se salvarão. Para provar que Cristo é o Messias, o Evangelho de S. João pode até ser suficiente, mas para demonstrar outras verdades necessárias, ele precisa de outros textos.
5ª dúvida: Inúmeras vezes Deus nos advertiu a não acrescentar, nem diminuir e seguir fiel-mente sua Palavra (Dt 4,2; 12,32; Js 1,7-8; 2 Ts 3,14; Ap 22,18-19). Qualquer que contrarie esta solene orientação divina peca contra o Senhor e denigre a Autoridade das Escrituras. Toda palavra de Deus é pura e não está aberta a acréscimos (Sl 12,6; 119,140; Pv 30,5-6). Quem rejeita tal princípio denigre a Suficiência da Palavra de Deus Escrita, fazendo de Deus menti-roso e maculando a revelação divina. Na medida em que o homem imperfeito acrescenta seus entendimentos não-inspirados naquilo que Deus perfeitamente inspirou, toda a pureza do ensino bíblico é corrompida.
Resposta: Citar tais textos para apoiar a Sola Scriptura é pura ingenuidade. É evidente que em nenhum desses textos Deus disse que apenas se revelaria através da escrita. Se lermos Dt 4, por exemplo, sobre não acrescentar ou retirar as palavras ordenadas, vemos que é Moisés quem está ordenando. Claro que ele está passando o que Deus disse a ele, mas o contexto mos-tra que estas palavras foram ditas oralmente por Moisés. Moisés tinha, portanto, a autoridade do Magistério, o que está muito distante da Sola Scriptura. Não há dúvida de que é palavra de Deus infalível, mas vinda por meio de Moisés e oralmente. Moisés estava dizendo que nada deve ser acrescentado ou retirado de suas palavras orais. Se essa ordem for entendida como Sola Scriptura, antes ela devia ser entendida como Sola traditione. Além disso, se entendermos que o escritor sacro está isolando a Escritura como regra de fé, entende-ríamos, então, que somente o Deuteronômio é autoridade de fé e que deveríamos excluir todos os livros escritos posteriores. Assim, teríamos que excluir 61 livros da Bíblia ou 68, se incluirmos os 7 livros que os solascripturistas retiraram. Vale ressaltar, ainda, que a Igreja Católica nunca acrescentou nada à palavra de Deus e nem jamais retirou. Logo, esse texto em nada se refere a nós. Pelo contrário, se acreditarmos na exclusividade da Bíblia como regra de fé, estaremos retirando algo à palavra de Deus, a Tradição e a autoridade da Igreja, ambas confirmadas pela mesma Bíblia.
Os solascripturistas imaginam que Moisés disse a todos para ler suas leis, estudá-las pessoalmente e pedir ao Espírito Santo para guiá-los. Mas será que foi assim? Isso não se encontra em nenhum dos versículos citados. O Livro da Lei foi colocado junto da Arca da Aliança (Dt 31,26), no Santo dos Santos. O povo não podia apreciar nada no Santo dos Santos, nem interpretar particularmente o Livro da Lei. Apenas o sumo sacerdote poderia entrar no Santo dos Santos, que continha a Lei, e apenas uma vez ao ano (Hb 9,6-8). Isto não tem nada a ver, pois, com Sola Scriptura.
Quanto ao texto de 2 Ts 3,14, se ele provasse a suficiência formal das Escrituras, então, 2 Ts 3, 6 (apenas 8 versículos antes) provaria a suficiência formal da Tradição. Como se vê, é mais lógico admitirmos que os versículos em pauta complementam-se e juntos demons-tram as duas regras de fé cristã: a oral e a escrita. Logo, adeus Sola Scriptura.
Quanto a Apc 21, 18.19 também nada depõe contra a Tradição e a favor da Sola Scriptura, pois a Tradição nada acrescenta à escrita, apenas a explica melhor. Se nós acrescentamos algo à escrita, o que dizer de muitas doutrinas protestantes, as quais estão alheias às Escrituras? O que dizer da própria Sola Scriptura? Não é ela um acréscimo à escrita, já que ela não consta na Bíblia sagrada? Além disso, não esqueçamos que o texto também diz que nada devemos tirar, no entanto, os solascripturistas retiraram inúmeras doutrinas bíblicas bem como reduziram o próprio cânon bíblico. Não é isso entrar em choque com o próprio texto citado?
Quando essa passagem afirma que nada deve ser acrescentado ou retirado das palavras deste livro, não estão se referindo à Sagrada Tradição sendo acrescentada à Sagrada Escritura. Na verdade, a Tradição nem acrescenta nem tira nada da Escritura, apenas a explica com mais clareza. É claro pelo contexto que o livro aqui citado é o do Apocalipse, e não a Bíblia inteira. Sabemos disso porque S. João diz que o que for culpado por acrescentar a este livro será penalizado com as pragas escritas neste livro, evidentemente que as pragas descritas no livro do Apocalipse. Negar isso é atentar contra o texto e distorcer seu claro significado, especialmente pelo fato de sabermos que a Bíblia que temos hoje não existia quando essa passagem foi escrita. Sendo assim não poderia significar a Escritura inteira. E sendo assim, é lógico que o autor do Apocalipse não afirmaria a exclusividade desse livro, o que negaria a autenticidade dos outros 26 livros do NT. E mesmo se extendermos essa afirmação à Escritura inteira, continuará sem negar a autenticidade da Santa Tradição, pois o texto quer dizer que nada entre em choque com a Escritura. E a Tradição, como já demonstramos, em nada se Cho-ca com a Escritura.
A mesma advertência de não acrescentar ou subtrair palavras é vista em Dt 4,2, inclusive já analisado, que diz: “Nada acrescentareis às palavras dos mandamentos que vos dou, e nada tirareis; assim guardareis os mandamentos do Senhor, vosso Deus, que eu vos dou.” Se aplicarmos uma interpretação paralela com este verso, logo tudo o que está na Bíblia além dos decretos das leis do AT deveria ser considerado apócrifo, incluindo-se o NT! Todos os cristãos rejeitam, evidentemente, essa conclusão. A proibição de Ap 22,18-19 contra a adição, portanto, não pode significar que os cristãos estão proibidos de buscar algum guia fora da Bíblia.
Quanto aos textos dos Salmos e dos provérbios, eles apenas exaltam a palavra de Deus (e essa palavra de Deus chega até nós escrita e oralmente). Os textos não dizem que se referem apenas aos escritos. Então, em momento algum eles favorecem a Sola Scriptura.
Além disso, mesmo que esses textos se referissem à Escritura, não poderíamos concluir a exclusividade da Escritura, porque não podemos deduzir essa exclusividade a partir de textos que apenas louvam essas Escrituras. Isso se chocaria com o texto de Apc 21, 18, objetado atrás. Enquanto há textos que louvam as Escrituras, e isso é verdade, há inúmeros outros que também louvam a Tradição. Veja, por exemplo: Sl 44,1; 78,5.10-11; 105,5; 143,5; Pr 2,18; Is 40,8; 59,21; Jr 6,16-17; 31,36; Dn 7,28 e Zc 1,6.
6ª dúvida: “E eu, irmãos, apliquei essas coisas, por semelhança, a mim e a Apolo, por amor de vós, para que, em nós, aprendais a não ir além do que está escrito, não vos ensoberbecendo a favor de um contra outro." (1 Cor 4,6)
Resposta: Esse texto também não favorece a Sola Scriptura, pois o mesmo S. Paulo que disse isso também disse:"Quisera agora estar presente entre vós e variar [os tons da] minha voz, pois não sei o que fazer com vós" (Gál 4,20). Se o fato de o apóstolo dizer que os coríntios não deviam ir além do que está escrito provasse a Sola Scriptura, então, ao dizer que sua presença é mais eficaz do que o escrito o apóstolo estaria afirmando a Sola Traditione. Além disso, se com tais palavras o apóstolo pretendesse provar a exclusividade de algo, prova-ria apenas a exclusividade do AT e de alguns pouquíssimos escritos do NT (uns 3), que eram os únicos escritos dos anos 55 d.c, provável data da redação dessa carta. Estaria, então o apóstolo excluindo todo o resto de seus escritos? E o pior, estaria ele excluindo os outros livros do NT?
Além disso, não esqueçamos a expressão: “para que, em nós, aprendais”, presente no versículo citado, a qual prova que a autoridade do apóstolo também é regra de fé. Está explícito aí que aquilo que dizem ou que fazem os apóstolos deve ser seguido. Logo, o texto não favorece a Sola Scriptura.
Raciocinemos ainda: será que os coríntios entenderam essas palavras de Paulo como a enunciação da exclusividade da Escritura de que dispunham na época? Paulo escreveu 1 Coríntios em meados de 55 d.c. Muito antes do cânon do NT ser escrito e fixado. Como, então defendeu aqui o apóstolo essa tal de Sola Scriptura? Mais grave: você acha que o apóstolo pretendeu convencer os coríntios de que os escritos da época deles era a verdade exclusiva de Deus? Se for assim, como Paulo conseguiu convencer depois esses mesmos coríntios que os escritos que vieram depois também eram palavras de Deus? Não dissera ele antes que apenas aquilo que tinha surgido até 55 d.c é que era Palavra divina? Como é que agora vem convencê-los de que surgira mais palavras inspiradas? Mais ainda: como é que depois de 55 d.c tem esse apóstolo a coragem de exortar os fiéis a seguirem suas pregações orais (1,13-14; 2,2 e 3,14) se só foi aceitável os escritos, e ainda pior, anteriores a essa data?
Logo, esse texto também não favorece a pretensão solascripturista.
Mas alguém poderia alegar aqui que em todos esses textos citados, o Espírito Santo já está prevendo o futuro fechamento do cânon bíblico. Logo, eles não podem se referir apenas aos livros nos quais estão redigidos, mas à Escritura inteira. Entretanto, convém observarrmos que mesmo referindo-se ao futuro, o que não descartamos, todos eles têm aplicação direta no período em que foram escritos. Assim, por exemplo, nesse texto citado de 1 Cor 4,6, não podemos entendê-lo corretamente, se dispensarmos o contexto no qual essa carta foi escrita. Paulo jamais poderia estar se referindo diretamente à Escritura inteira, se claramente ele está escrevendo para a comunidade de Corinto e estava doutrinando essa comunidade. É óbvio, pois, que o texto aplica-se diretamente à essa comunidade. Não há, então, como entender o texto desconsiderando esse detalhe. Sendo, assim, é necessário indagarmos o que pretendia Paulo ensinar com aquelas palavras bem como nos questionar como a comunidade acolheu e entendeu aquele ensino.
Professor Evaldo Gomes