As principais linhas doutrinárias do Protestantismo
Em síntese: O protestantismo se
apresenta hoje em dia sob centenas de modalidades, muitas vezes
divergentes entre si. Todavia repousa sobre linhas básicas, devidas aos
respectivos fundadores no século XVI: Lutero, Calvino, Melanchton,
Knox... Essas linhas são: 1) a justificação pela fé sem as obras; 2) a
Bíblia como única fonte de fé, sujeita ao "livre exame"; 3) a negação de
intermediários entre Deus e o crente. Estes princípios serão, a seguir,
expostos e avaliados.
O protestantismo representa uma
realidade assaz complexa, ou seja, o bloco de aproximadamente
400.000.000 de cristãos que não pertencem nem à Igreja Católica, cujo
Pastor visível reside em Roma como sucessor do Apóstolo Pedro, nem às
comunidades cristãs orientais (ortodoxa, nestoriana e monofisita),
comunidades que se separaram do tronco primordial em etapas sucessivas
desde o século V até o século XI.
O iniciador do movimento protestante é
Martinho Lutero, que, a partir de 1517, quis reformar o Credo e as
instituições cristãs, e por isto se afastou da Igreja dando início ao
Luteranismo. Ao lado deste, enumeram-se:
O Calvinismo (que absorveu o
Zwinglianismo ou a reforma de Ulrich Zwingli em Zürich, Suíça),
movimento afim ao de Lutero, empreendido por Calvino em Genebra, Suíça,
E o Anglicanismo, reforma semelhante
oriunda na Inglaterra. Distinguem-se 1) a High Church, Alta Igreja, que
conserva muitos elementos do Catolicismo e pretende ser a ponte entre
Catolicismo e Protestantismo propriamente dito, e 2) a Low Church, Baixa
Igreja, fortemente impregnada de princípios doutrinários do
Protestantismo. Os anglicanos mais radicais emigraram para os Estados
Unidos onde têm dado origem a novas e novas divisões.
Estas três denominações (Luteranismo,
Calvinismo e Anglicanismo) representam o que se pode chamar "Igrejas
protestantes tradicionais", todas iniciadas no séc. XVI (os Anglicanos
nem sempre aceitam a designação de "protestantes", embora, por seus
princípios doutrinários, se filiem ao Protestantismo).
Destes três grandes troncos do
Protestantismo derivaram-se centenas de sociedades menores, que por
vezes já não recebem o nome de Igrejas, mas o de seitas, visto serem
movidas por espírito diverso do das Igrejas; são reformas da reforma,
dissidências da dissidência: metodistas, batistas, congregacionais,
quakers, Ciência Cristã, Mórmons, Adventistas, Testemunhas de Jeová...
Esses múltiplos grupos protestantes
autônomos professam credos diferentes, chegando alguns a negar a própria
Divindade de Cristo; o liberalismo doutrinário predomina entre eles.
Contudo podem-se enunciar três grandes teses como características dos
diversos tipos de Protestantismo: 1) a justificação pela fé sem as
obras; 2) a Bíblia como única fonte de fé, interpretada segundo o "livre
exame"; 3) a negação de intermediários entre Deus e o crente.
TRÊS PONTOS CAPITAIS
a) A justificação pela fé sem as obras
Lutero considerava esta tese como
central dentro da sua Teologia: "artigo do qual nada se poderá subtrair,
ainda que o céu e a terra venham a desmoronar" (Artigos de Schmakalde,
1537).
Qual o significado de tal proposição e donde lhe vem a sua importância no Protestantismo?
A resposta não é difícil; deriva-se da
situação psicológica em que o reformador se achou em certa fase de sua
vida. Lutero fez-se frade agostiniano, mais movido pelo medo (tendo
escapado à fulminação por um raio, prometeu entrar no convento) do que
por autêntica vocação. No claustro, experimentou a concupiscência, à
qual opôs penitência e ascese. Sentindo, porém, continuamente as más
tendências em sua natureza, entrou em angustiosa crise: queria
libertar-se da concupiscência, mas não o conseguia... Um belo dia julgou
ter encontrado a solução: apelando para São Paulo (principalmente para a
epístola aos Romanos), começou a ensinar que a concupiscência é
realmente invencível; por conseguinte é inútil procurar dominá-la
mediante penitência e boas obras. Nem Deus requer isto do homem; basta
aceitar Cristo como Salvador, isto é, crer com confiança que Deus Pai,
em vista dos méritos de Jesus, não leva em conta os pecados do
indivíduo; a fé confiante ("fiducial"), independentemente de boas obras,
faz que Deus nos recubra com o manto dos méritos de Cristo,
declarando-nos justos. Tal declaração é meramente jurídica ou
extrínseca, não afeta o interior da natureza humana; esta, mesmo depois
de "justificada", nada pode fazer para obter a salvação eterna, pois se
acha como que aniquilada pelo pecado, reduzida à categoria de
instrumento inerte nas mãos de Deus ou de serra nas mãos do carpinteiro
(assim se formula a famosa tese do "servo arbítrio" de Lutero).
Neste quadro de idéias, vê-se que não se
pode falar de cooperação do homem com a graça de Deus, nem de méritos.
Lutero e Calvino reconheciam que a caridade nasce da fé, como a maçã
provém da macieira, mas (acrescentavam) não são a caridade e suas obras
que importam (ou ao menos... que importam em primeiro lugar); o crente
pode estar certo da salvação eterna em qualquer fase da sua vida, desde
que mantenha a sua fé confiante. Donde o famoso adágio de Lutero: "Pecco
fortiter, sed fortius credo. - Peco intensamente, mas ainda mais
intensamente creio" (carta a Melanchton, 1s de agosto de
1521); com estas palavras, o reformador não recomendava o pecado, mas
queria dizer que a simples confiança no Salvador ainda tem mais peso no
processo de salvação do que a culpa do homem. Calvino, do qual muito se
inspiraram os presbiterianos e batistas, acentuou ao extremo estas
idéias, afirmando que Deus predestina infalivelmente para a salvação
eterna, de sorte que, se o homem não perde a sua fé, pode ter certeza de
que chegará à bem-aventurança celeste (donde se deriva para o crente um
grande reconforto).
b) A Bíblia, única fonte de fé, sujeita ao "livre exame"
A inovadora tese da justificação pela fé
fiducial encontrou fundamento numa revisão nas fontes da Revelação
cristã. Estas são a Palavra de Deus, que nos vem por dois canais: a
Escritura Sagrada e a Tradição oral apregoada pelo magistério da Igreja.
Resolveram, pois, rejeitar a Tradição ou o magistério, para só dar
crédito à Palavra escrita ou à Bíblia. Esta, para o protestante, tudo
contém; é, por si mesma, clara em tudo que concerne à salvação eterna.
Calvino se exprime a respeito em termos muito fortes:
"Quanto à objeção que os católicos nos
fazem, perguntando-nos de quem, donde e como temos a convicção de que a
Escritura provém de Deus, é semelhante à questão de quem quisesse saber
como aprendemos a distinguir a luz das trevas, o branco do negro, o doce
do amargo. A Escritura, com efeito, tem seu modo de se manifestar, modo
tão notório e seguro que se compara à maneira como as coisas brancas e
negras manifestam sua cor e as coisas doces e amargas manifestam o seu
sabor" (Institution Chrétienne 17§ 3).
Para ajudar a pessoa a ler e entender a
Bíblia, o Espírito Santo dá seu testemunho interior, iluminando a mente e
dirigindo o coração. Em conseqüência, cada crente tem o direito de
"deduzir" da Bíblia as verdades que ele, em seu bom senso, julgue
haverem sido a ele ensinadas pelo Espírito Santo.
Assim o Protestantismo atribui ao
indivíduo uma prerrogativa que ele nega à Igreja visível e hierárquica:
esta pode errar no seu ensinamento, corrompendo o depósito da fé (apesar
das promessas de Cristo, seu Fundador); toca, por conseguinte, a cada
cristão, guiado pelo Espírito Santo, encontrar de novo a Palavra de Deus
perdida pela Igreja...
A reação do crente protestante contra o
magistério eclesiástico é, aliás, típica expressão da mentalidade da
Renascença: no séc. XVI o homem criou, sim, uma consciência nova dentro
de si, tendente a pôr em xeque qualquer tipo de autoridade, para mais
exaltar o indivíduo. "O que rejeito,absolutamente, é a autoridade",
escrevia Alexandre Vinet (1797-1847), chefe do movimento dito "da Igreja
Livre" na Suíça ocidental calvinista. O Evangelho, para Lutero, devia
ser não somente uma escola de obrigações, mas também uma via de
libertações (entre as quais, a libertação frente à autoridade religiosa
visível).
c) A negação de intermediários entre Deus e o crente
O Protestantismo dá valor decisivo à
atitude do indivíduo diante de Deus; segundo a teologia reformada, é a
fé subjetiva nos méritos de Cristo que garante a salvação. Em
conseqüência, pouca margem aí resta para se conceberem dons de Deus que
permaneçam extrínsecos ao indivíduo e a este comuniquem os méritos do
Salvador. Em outros termos: não têm cabimento canais transmissores da
graça, como sejam ritos e práticas a serem administrados por uma
sociedade visível (a Igreja) e por uma hierarquia de ministros
oficialmente instituída. Para o protestante, entre o homem justificado
pela fé e Deus, não há Sacerdote senão o Senhor Jesus invisível, que
está nos céus (a prolongação da Encarnação através da Igreja e dos
sacramentos é depreciada): também não há outro Mestre senão o Espírito
Santo, que fala nas Escrituras e no íntimo de cada crente, sem se servir
de algum magistério visível e objetivo.
Note-se, em particular, a repercussão destas idéias nos conceitos de sacramento e Igreja.
O número dos sacramentos foi
notavelmente diminuído pelos doutores do Protestantismo. Dentre os sete
tradicionais, Calvino chegou a admitir dois apenas: o Batismo e a Ceia.
Quanto à função dos sacramentos, os reformadores nos diriam que estes
não são portadores da graça, mas apenas sinais que, lembrando as
promessas da benevolência divina, excitam a fé (ou confiança) nessas
promessas; estimulada por tais sinais, é a fé que produz a santificação
do crente. Os sacramentos portanto não exercem, como se diz em linguagem
teológica, causalidade nem física nem moral no processo de
santificação; a sua influência fica limitada ao setor psicológico
(recordam a palavra de Deus...).
No Calvinismo, torna-se mesmo impossível
que a graça esteja associada a algum sinal objetivo, pois ela só é dada
aos predestinados; a quem não pertença ao número destes, não adianta
recorrer a algum rito sensível. Lutero, um pouco menos inovador neste
ponto, afirmava que o Batismo confere a santidade, mas só o faz mediante
a fé: "Não o sacramento, mas a fé no sacramento é que justifica. - Non
sacramentum, sed fides in sacramento iustificat", escrevia o reformador
ao Cardeal Caetano. O Zwinglianismo empalidecia ainda mais o papel dos
sacramentos, reduzindo-os a meros testemunhos da fé capazes de unir os
homens entre si: pelos sacramentos, ensinava Zwingli, o crente atesta e
comprova à Igreja a sua fé, sem que da Igreja receba sequer o selo ou a
comprovação da fé.
A prevalência do indivíduo sobre a
coletividade se exprime com não menor clareza no conceito protestante de
Igreja. Esta, conforme os reformadores, não é um corpo visível, mas
sociedade invisível; só uma coisa impede que alguém a ela pertença: o
pecado. Quem não se deixa contaminar por este, torna-se membro da
igreja, independentemente dos quadros externos nos quais os crentes
professam a sua fé. Em geral, dizem os protestantes que a Igreja visível
se corrompeu e extinguiu no séc. IV, sob o Imperador Constantino, dada a
colaboração do Estado e da Igreja, pois então se introduziram nos mais
íntimos redutos do Cristianismo doutrinas e costumes pagãos. Subsiste,
porém, a Igreja invisível, a qual continua a vida da comunidade
primitiva de Jerusalém. Ora seria essa Igreja invisível que vai tomando
corpo nas denominações protestantes a partir do séc. XVI...
Se agora se pergunta como é governada a
Igreja invisível, toca-se uma questão árdua para o Protestantismo: este,
de um lado, rejeita o Papado e, de outro lado, afirma que todos os
fiéis são sacerdotes. Em conseqüência, não restam critérios muito
seguros para se constituir o governo da Igreja... Donde a multiplicidade
de soluções: há denominações protestantes dirigidas por seus "bispos"
(tais são o epíscopalismo anglicano, o metodismo...), bispos, porém, que
são mais mentores dos crentes do que sacerdotes ou ministros dos meios
de santificação; há-as também dirigidas por presbíteros (o
presbiterianismo, por exemplo), e há as dirigidas por meros delegados da
coletividade ou da congregação (congregacionalismo, que reproduz o
sistema democrático no setor religioso). Vários grupos protestantes não
concebem mesmo dificuldade em admitir a autoridade mais ou menos
absoluta dos governos civis, no que diz respeito à vida temporal da
Igreja (o que resulta em secularização da face visível do Cristianismo).
Expostas sumariamente as três características da teologia protestante, incumbe-nos agora analisar o seu significado.
UMA ESTIMAÇÃO DA DOUTRINA
a) A justificação pela fé sem as obras
Não há dúvida, a Escritura ensina que a
remissão dos pecados é gratuitamente outorgada aos homens pelos méritos
de Jesus Cristo (cf. Rm 5,8s); o homem não pode merecer o perdão, mas
tem que o aceitar contritamente, crendo no amor de Deus e entregando-se
humilde a esse amor. Contudo a Escritura ensina outrossim que o perdão
concedido por Deus não é mera fórmula jurídica em virtude da qual não
nos seria mais levado em conta o pecado, pecado que, apesar de tudo,
ficaria inamovível a contaminar a alma. Não; justificação, segundo as
Escrituras, é regeneração (cf. Jo 3,3.5; Tt 3,5), elevação à dignidade
de filhos de Deus não nominais apenas, mas reais (cf. 1 Jo 3,1), de modo
a nos tornarmos consortes da natureza divina (cf. 2Pd 1,4), capazes de
produzir atos que imitem a santidade do Pai Celeste (cf. Mt 5,48). Se,
por conseguinte, Deus, ao nos perdoar as faltas, nos concede uma nova
natureza, está claro, conforme as Escrituras mesmas, que as obras boas
que estejam ao alcance desta nova natureza, devem pertencer ao programa
de santificação do cristão; elas se tornam condição indispensável para
que alguém consiga a vida eterna. Deus não pode deixar de exigir tais
obras depois de nos haver concedido o princípio capaz de as produzir.
É óbvio que essas obras boas não
constituem o pagamento dado pelo homem em troca da graça de Deus, nem
são algo que a criatura efetue independentemente dos méritos de Cristo
Salvador, mas são os frutos necessários da ação de Deus (ou da graça) no
homem regenerado, são concretizações dos méritos do Salvador; na
verdade, é Cristo quem vive no cristão e neste exerce seu influxo vital,
como a cabeça nos seus membros e como o tronco da videira nos seus
ramos (cf. Gl 2,20; Jo 15,1s).
São Paulo, na epístola dos Romanos,
tanto inculca a justificação pela fé sem as obras, porque tem em vista a
primeira conversão ou a conversão do pecador a Deus (claro está que
esta não pode ser o resultado de obras meritórias prévias). São Tiago,
porém, que visa propriamente ao desabrochar da vida cristã após a
conversão, inculca fortemente a necessidade das boas obras (por isto a
epístola de Tiago muito desagradava a Lutero, que quis negar a sua
canonicidade).
Quanto à concupiscência que permanece no
cristão por toda a vida, ela não constitui pecado enquanto o indivíduo
não lhe dá consentimento; por muito intensa que seja, a graça do
Redentor é certamente capaz de triunfar sobre ela. O fato de que a
Escritura a chama "pecado" (cf. Rm 7,20), explica-se por estar a
concupiscência intimamente ligada ao pecado como conseqüência deste.
De resto, na vida cotidiana os
protestantes valorizam altamente as boas obras; falam então linguagem
muito semelhante à dos católicos.
A Bíblia e o livre exame
Visto que a S. Escritura teve origem
após a pregação oral e como eco da pregação oral dos Profetas e dos
Apóstolos, entende-se que a Tradição (transmissão) oral seja necessário
critério de interpretação da Bíblia Sagrada. O valor da Tradição se
explica pelo fato de que a Revelação oral antecedeu a redação das
Escrituras nem foi, por inteiro, consignada nos livros sagrados (os
autores sagrados nunca tiveram a intenção de confeccionar um manual
completo dos ensinamentos revelados; ver Jo 20,30s; 21,24s); donde se vê
quão alheio é ao espírito mesmo da Bíblia interpretá-la
independentemente da corrente de doutrinas dentro da qual a Escritura se
originou, se conservou e sempre se transmitiu.
Ao que foi dito ainda se pode
acrescentar a menção de algumas conseqüências do princípio do livre
exame (é pelos frutos que se conhece a árvore!).
Os próprios reformadores e seus
discípulos, desejando exaltar a autoridade das Escrituras, tornaram-se
deturpadores da Palavra de Deus. Foi, sim, em nome do Antigo Testamento
que Lutero permitiu a bigamia a Filipe de Hessen. É em nome das
Escrituras que os fundadores de seitas vão ensinando teses fantasistas e
contraditórias sobre a data do fim do mundo (tenham-se em vista os
Adventistas, as Testemunhas de Jeová, alguns grupos pentecostais). Em
nome do livre exame da Bíblia os críticos protestantes têm rejeitado
inteiras seções ou até livros escriturísticos; chegam a negar a
Divindade de Cristo (o primeiro autor que negou a plena veracidade dos
Evangelhos foi o protestante H. S. Reimarusf 1768).
De resto, verifica-se que as comunidades
de crentes, tendo abandonado a venerável Tradição transmitida desde os
inícios do Cristianismo, ainda, e apesar de tudo, seguem uma
tradição,... tradição evidentemente humana, a que deu início tal ou tal
fundador de seita. Criou-se em cada denominação de "reformados" uma
tradição particular ou uma via própria de interpretação da Bíblia.
É a rejeição de todo magistério munido
da autoridade do próprio Deus que gera instabilidade nas comunidades
protestantes, ocasionando a criação de novas e novas denominações. A
razão destas múltipas reformas não será o fato de que nenhuma delas é
realmente guiada pelo Espírito Santo, mas todas são obra meramente
humana? Aliás o próprio Lutero já verificava em seus tempos: "Há tantos
credos quantas cabeças há".
Alexandre Vinet, já citado, afirmava, por sua vez, no século passado:
"Para mim, o Protestantismo é apenas um
ponto de partida; a religião fica muito além dele... A reforma será uma
exigência permanente dentro da Igreja; ainda hoje a reforma está por se
fazer".
A experiência de 400 anos mostrou que se
volta contra os próprios irmãos separados o princípio com que estes
quiseram outrora impugnar os católicos: "Mais vale obedecer a Deus do
que aos homens" (At 5,29).
A negação de intermediários entre Deus e o crente
Esta posição acarreta, como dizíamos, a
negação de várias instituições que se tornaram clássicas no
Cristianismo: os sacramentos concebidos como canais da graça, a
intercessão dos Santos, o sacerdócio oficial e hierárquico, a
visibilidade da Igreja, etc.
Seguem-se três observações aptas a mais evidenciar o erro radical contido no princípio protestante:
a) a rejeição dos sacramentos e do
sacerdócio hierárquico contradiz à lei geral que Deus sempre quis
observar nas suas relações com o homem: assim como na plenitude dos
tempos o Senhor atingiu a criatura mediante o mistério da Encarnação,
assim antes e depois desta Ele veio e vem sob sinais sensíveis;
principalmente no Novo Testamento a dispensação das graças conserva a
estrutura da Encarnação: os sacramentos e sacramentais são matéria
consagrada que prolonga e desdobra a estrutura do Verbo Encarnado. Como o
corpo de Jesus recebeu outrora a vida divina e a comunicou aos homens
seus contemporâneos, assim os elementos corpóreos (água, pão, vinho,
óleo, palavras e gestos do homem...) vêm a ser, nos sacramentos, os
canais que contêm e transmitem a graça de Deus; não os poderíamos
reduzir à categoria de meros estimulantes da memória, vazios de conteúdo
sobrenatural, sem quebrar a harmonia do plano da salvação.
b) Nos desígnios de Deus, a santificação
do homem sempre foi concebida comunitariamente, em oposição a qualquer
individualismo. O Criador houve por bem, no início da história, incluir
todos os homens no primeiro Adão; quis outrossim restaurar todos
conjuntamente em Cristo; conseqüentemente santifica-nos hoje por meio de
uma comunidade, que é a Igreja, caracterizada por sinais objetivos e
por um ministério visível, fora do qual ninguém pode pretender encontrar
o Cristo. - Exaltando o indivíduo a ponto de relegar para plano
secundário a comunidade, o Protestantismo vem a ser autêntico produto da
mentalidade subjetivista e antropocêntrica do Renascimento.
c) A Reforma pretende corresponder à
Igreja primitiva, anterior à corrupção que "paganizou" o Evangelho...
Esta pretensão é tão vã que os mestres protestantes se têm visto
obrigados a fazer recuar constantemente o período da "grande corrupção":
ao passo que os primeiros reformadores a colocavam no séc. IV, outros
foram retrocedendo até os tempos de S. Cipriano (+ 258), S. Ireneu (+
cerca de 202), Clemente Romano (+ 102?) ou até a geração apostólica. O
famoso crítico Harnack (+ 1930) chegava a dizer que já os Apóstolos
perverteram o Evangelho de Cristo - o que é evidentemente absurdo, pois
não conhecemos o Evangelho de Cristo senão através da pregação e dos
escritos dos Apóstolos; Harnack, porém, era obrigado a proferir tal
contra-senso, porque reconhecia claramente que a Igreja Católica atual
corresponde fielmente à Igreja primitiva ou, como dizia ele, que
"Cristianismo, Catolicismo e Romanismo constituem uma identidade
histórica perfeita" (Theologische Literaturzeitung, 16 jan. 1909).
Fonte:
REVISTA PERGUNTE E RESPONDEREMOS nº 397/junho 1995.