A Igreja proibiu a leitura da Bíblia?
Revista: "PERGUNTE E
RESPONDEREMOS"
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 496 -
Ano
: 2003 - Pág. 457
Em síntese: Até o século XVI
não houve obstáculo à
leitura da Bíblia na Igreja. Quando,
porém, no fim da Idade Média começaram a aparecer movimentos religiosos
que se
valiam da Bíblia para agitar o povo de Deus, as autoridades
eclesiásticos
resolveram restringir o uso da Bíblia; só com especial autorização do
Bispo
poderia ser lida em
vernáculo. No século
XX, porém, foram canceladas as restrições em favor de repetidas
exortações da
Igreja ao uso assíduo do texto sagrado.
As circunstâncias dos tempos atuais são outras.
Diz-se que a Igreja Católica
proibiu aos fiéis a leitura da Bíblia. A
afirmação, porém, costuma ser vaga ou destituída de documentação, de
modo que
não se sabe até que ponto possa ser verídica.
Eis por que se impõe o estudo deste assunto.
Até o século XVI
Por toda a Antigüidade o
Livro Sagrado era recomendado à leitura dos cristãos. S.
Jerônimo (+ 420) é um dos mestres que
melhor representam esta atitude pastoral, escrevendo a Eustóquio, filha
de
Santa Paula:
"Lá com freqüência e aprende
o melhor que possas. Que o sono te
encontre com o livro nas mãos e que a página sagrada acolha o teu rosto
vencido
pelo sono" (PL 22,404).
Na Idade Média apareceram
correntes dualistas e heréticas que se valiam da Bíblia para apoiar suas
concepções errôneas. Tal foi, por
exemplo, o caso dos cátaros, avessos à matéria como se esta fosse, por
si
mesma, má. Em conseqüência, o Concílio
de Tolosa (França) em 1229 proibiu o uso de traduções vernáculas da
Bíblia. Esta disposição foi retirada
pelo Concílio da Tarragona (Espanha) em 1233.
A mesma proibição aparece num decreto do rei Jaime I da Espanha
em 1235:
"Ninguém possua em vernáculo os livros do Antigo e do Novo Testamento".
No século anterior, os
Valdenses (de Pedro Valdo, Pierre de Vaux) apoiavam-se na Bíblia
traduzida para
o provençal, a fim de negar o purgatório, o culto dos Santos, o serviço
militar, o juramento ...; só admitiam os sacramentos do Batismo, da
Penitência
e da Eucaristia.
No século XIV, John Wiclef
(1320-84) em Oxford estabeleceu como única norma de fé a Escritura
traduzida
para o inglês, interpretando subjetivamente a Bíblia, negava a
autoridade do
Papa, a confissão auricular, a transubstanciação eucarística, o culto
dos
Santos...; provocava assim grande agitação entre os fiéis. Por
isso o Sínodo de Oxford (1408) proibiu a
publicação e a leitura de textos vernáculos da Bíblia não autorizados.
O mesmo se deu no Sínodo dos Bispos alemães
em Mogúncia (1485).
Do Século XVI ao século XIX
As novas ideias que surgiram
no decorrer da Idade Média, chegaram ao seu auge na Reforma protestante
do
século XVI. Esta proclamou a Bíblia como
única autoridade decisiva em matéria de fé e de costumes, cada crente é
livre
para interpretá-la segundo "o livre exame" ou a sua intuição subjetiva.
Tais princípios haviam de esfacelar o
Cristianismo; logo três reformadores (Lutero, Zvínglio e Calvino)
fundaram três
novas modalidades de Cristianismo no século XVI; por sua vez, as
comunidades
reformadas foram reformadas e reformadas sucessivamente, derivando-se
deste
processo centenas de denominações protestantes independentes umas das
outras,
porque dependentes da inspiração subjetiva do respectivo fundador.
Ademais os princípios da
Reforma protestante fazem violência à própria Escritura, porque a
desligam da
Tradição oral, que lhe é anterior e sem a qual a Bíblia não pode ser
devidamente entendida, cf. 2Ts 2, 5s. 15;3.6...
Eis por que o Concílio de
Trento (1543-65) tomou medidas que preservassem os fiéis católicos dos
males
acarretados pelas proposições dos reformadores, assim
a) declarou autêntica
(isenta de erros teológicos) a Vulgata latina, tradução devida a S.
Jerônimo (+
420) e muito difundida entre os cristãos.
Assim se dissiparia a confusão existente entre clérigos e leigos,
que,
em meio a múltiplas traduções, já não sabiam encontrar a pura mensagem
bíblica.
- O Concílio não quis afirmar que a tradução da Vulgata é
lingüísticamente
perfeita, mas tomou uma providência necessária no século XVI;
b) rejeitou o princípio do
livre exame da Bíblia. Esta só pode ser
entendida se iluminada por instâncias objetivas, especialmente pela
Tradição,
que o magistério da Igreja formula com a assistência do Espírito Santo;
c) proibiu edições da Bíblia
sem o nome do autor responsável pela edição.
Proibiu também a difusão do texto bíblico sem a autorização do
Bispo
diocesano;
d) estimulou o
reflorescimento dos estudos bíblicos nos colégios, conventos e
mosteiros.
O Concílio de Trento definiu
mais uma vez o Cânon Bíblico incluindo os deuterocanônicos (Tb, Jt, Sb,
Br,
Eclo, ½ Mc), como já o tinham feito os Concílios do século IV. A
prova de que o Concílio nada inovou é que o
próprio Lutero traduziu os deuterocanônicos para o alemão; com efeito,
na sua
edição da Bíblia datada de 1534 encontra-se o texto dos sete
deuterocanônicos,
assim como os fragmentos de Éster 10, 4-16, 24, de Daniel 3, 24-90; 13,
1-14,
42 e ainda a "Oração dos Manasses" (Oração que a Tradição cristã não
inclui no
seu cânon). A persistência desses livros
nas edições protestantes bem mostra que não foi o Concílio de Trento que
os
introduziu no catálogo bíblico, mas Lutero e a Tradição protestante os
receberam
da Tradição cristã medieval e antiga ou mesmo dos judeus de Alexandria.
Foi somente no século XIX que as Sociedades
Bíblicas protestantes deixaram de incluir nos seus exemplares da Bíblia
os
livros deuterocanônicos1.
No tocante às traduções da
Bíblia, o Papa Paulo V em 1564 aprovou as seguintes normas:
Regra III : "... (o uso) das
traduções dos livros do
Antigo Testamento poderá ser concedido, a juízo do Bispo, unicamente a
homens
doutos e piedosos sob a condição de que tais traduções sejam usadas
apenas para
esclarecer a Vulgata e melhor entender a S. Escritura ... O uso das
traduções
do Novo Testamento realizadas por autores da primeira classe" a ninguém
seja
concedido, porque sua leitura costuma acarretar para os leitores pouca
utilidade e grande perigo".
Regra IV: "Tendo-se
evidenciado pela experiência que,
se se permite a leitura da Sagrada Escritura em língua vernácula de
maneira
ordinária e indiscriminada, costuma originar-se, em virtude da
temeridade dos
homens, mais detrimento do que utilidade; é necessário nesse particular
seguir
o juízo do Bispo ou do Inquisidor, a fim de que, ouvido o pároco ou o
confessor, se conceda a leitura da Bíblia em língua vernácula àqueles
que se
possa prever retirarão de tal leitura aumento de fé e de piedade sem
prejuízo
algum espiritual" (D. S., Enquirídio
1853s).
Estas disposições hão de ser
entendidas dentro das circunstâncias históricas em que foram
promulgadas,
visavam à preservação da fé ameaçada pelo uso capcioso da Bíblia no
século
XVI. Tiveram por conseqüência a pouca
difusão do texto sagrado entre os católicos e a falta de contato da
piedade
posterior com as suas fontes bíblicas, tornaram-se, por isto, ponto
nevrálgico
na disciplina da Igreja, de tal modo que os jansenistas dos séculos
XVI/XVIII
as impugnaram.
No século XIX
multiplicaram-se as Sociedades Bíblicas protestantes, cuja finalidade
era
difundir a Bíblia em traduções vernáculas.
Compreende-se que, na base dos princípios adotados no século XVI,
a
Igreja se opusesse a tais iniciativas, consideradas como perigosas para a
reta
fé.
A primeira advertência
deu-se em 1816. Ao arcebispo católico
que recomendava aos seus fiéis a Sociedade Bíblica fundada em São
Petersburgo na
Rússia, escrevia o Papa Pio VII:
"A Igreja Romana, segundo as
prescrições do Concílio de Trento, reconhece a edição Vulgata da Bíblia e
rejeita traduções feitas para outros idiomas, se não estiverem
acompanhadas de
notas provenientes dos escritos dos Padres e dos doutores católicos, a
fim de
que tão grande tesouro não seja exposto às corruptelas das novidades...
Se não poucas vezes
lamentamos que tenham falhado na interpretação das Escrituras homens
piedoso e
sábios, como não deveremos recear grandes riscos se se entregarem as
Escrituras
traduzidas em vernáculo ao povo ignorante, que, na maioria dos casos,
carece de
discernimento e julga com temeridade ?"
(D. S., Enquirídio 2710s).
Em 1844 o Papa Gregório XVI
escrevia :
"Não ignorais quanta
diligência e sabedoria são necessárias para se traduzir fielmente a
Palavra de
Deus; em conseqüência, nada há de mais fácil do que nas traduções
vernáculas,
multiplicadas pelas Sociedades Bíblicas, se introduzirem erros
gravíssimos,
seja por imprudência, seja por fraude de tantos tradutores; tais erros,
aliás,
permanecem ocultos, para a perdição de muitos, dada a multidão e a
variedade de
tais Sociedades. Às Sociedades Bíblicas
pouco ou nada interessa o fato de que os homens que lêem a Bíblia em
vernáculo,
caíam em um ou outro erro; mas lhes importa que se acostumem aos poucos a
exercer o livre exame a respeito do sentido das Escrituras e a
menosprezar as
tradições divinas contidas na doutrina dos Padres e guardadas na Igreja
Católica, repudiando assim o próprio magistério da Igreja". (D.
S. Enquirídio nº 2771).
Declaração semelhante foi proferida
pelo Papa Pio IX em 1846.
Tal posição da Igreja
manteve-se até o começo do século XX.
Era motivada por circunstâncias contingentes e se revestia de
caráter
disciplinar, não dogmático. Era, pois,
reformável desde que desaparecessem as razões que inspiraram as
apreensões
decorrentes da difusão do texto sagrado em língua vernácula. Ora
realmente no século XX foi-se
alterando contexto histórico. O Papa S. Pio X
(1903-14) deu início a uma
renovação da piedade da Igreja, que fora profundamente marcada pela
réplica ao
protestantismo, ao jansenismo e heresias
dos últimos séculos; a atitude defensiva ou preservadora não podia
deixar de
empobrecer a piedade católica; fora necessária, mas não se podia manter
por mais
tempo; nem havia no século XX razões para mantê-la. A
volta às fontes, que deve sua inspiração
remota a São Pio X, compreenderia a restauração do espírito litúrgico, o
recurso freqüente à S. Escritura e a renovação da catequese. Conscientes
disto, entramos na história do
século XX.
No século XX
Em 1920, o Papa Bento XV
quis comemorar o 15º centenário da morte de S. Jerônimo publicando a
encíclica Spiritus
Paraclitus, na qual escreveu:
"Pelo que Nos toca,
Veneráveis Irmãos, à imitação de São Jerônimo jamais deixaremos de
exortar
todos os fiéis cristãos a que leiam todos os dias principalmente os
Santos
Evangelhos de Nosso Senhor, os Atos e as epístolas dos Apóstolos,
tratando de
convertê-los em seiva do seu espírito e em sangue de suas veias".
(Enquirídio
Bíblico nº 477).
Quanto às disposições para
bem aproveitar a leitura bíblica, o Pontífice as resumia nestes termos:
"Todo aquele que se aproxima
da Bíblia com espírito piedoso, fé firme, ânimo humilde e sincero desejo
de
aproveitar, nela encontrará e poderá degustar o pão que desce dos céus"
(E.B. nº 489)
A atitude de Bento XV
representava algo de novo na Igreja posterior ao Concílio de Trento, mas
estava
na linha de conduta pastoral do Papa anterior, São Pio X.
Pouco mais de dois decênios
decorridos, o Papa Pio XII, na sua encíclica Divino Afflante Spiritu,
recomendava por sua vez a difusão da Bíblia entre os fiéis:
"Os prelados favoreçam e
prestem ajuda às piedosas associações cuja finalidade é difundir entre
os fiéis
os exemplares das Sagradas Letras, principalmente dos Evangelhos, e
procurar
que nas famílias cristãs se faça ordenada e santamente a leitura diária
das
mesmas, recomendem eficazmente a S. Escritura traduzida para as línguas
vernáculas com a aprovação da Igreja"
(E.B. nº 566).
A orientação dos Pontífices
foi assumida pelo Concílio do Vaticano II (1962-65), especialmente em
sua Constituição Dei
Verbum, c.6, que trata da S. Escritura na vida da Igreja: um forte
estímulo aí
é dado à freqüentação cotidiana da Escritura por parte dos fiéis, como
também à
difusão do texto sagrado em línguas vernáculas:
"Este Sagrado Concílio
exorta com ardor e insistência todos os fiéis, mormente os Religiosos, a
que
aprendam a eminente ciência de Jesus Cristo (Fl 3,8) mediante a leitura
freqüente
das Divinas Escrituras, porque a ignorância das Escrituras é ignorância
de
Cristo. Debrucem-se, pois, gostosamente
sobre o texto sagrado, quer através da Sagrada Liturgia, rica de
palavras
divinas, quer pela leitura espiritual, quer por outros meios que se vão
espalhando ..., com a aprovação e o estímulo dos pastores da Igreja.
Lembrem-se, porém, de que a leitura da S.
Escritura deve ser acompanhada da oração, para que seja possível o
colóquio
entre Deus e o homem; com Ele falamos quando rezamos; a Ele ouvimos
quando
lemos os divinos oráculos.
Compete aos sagrados
pastores, depositários da doutrina apostólica, instruir oportunamente os
fiéis
que lhes foram confiados, no reto uso dos livros divinos, de modo
particular do
Novo Testamento, e sobretudo os Evangelhos.
E isto por meio de traduções dos textos sagrados, que devem ser
acompanhados de notas necessárias e verdadeiramente suficientes para que
os
filhos da Igreja se familiarizem de modo seguro e útil com a Sagrada
Escritura
e se embebam do seu Espírito" (nº 25).
Como se vê, não poderia ser
mais favorável ao uso da S. Escritura a atitude da Igreja contemporânea.
As palavras de S. Jerônimo (+ 420)
tornaram-se norma da autoridade eclesiástica.
As restrições foram impostas não ao texto latino, mas às
traduções vernáculas,
em virtude de fatores contingentes; a Igreja, como Mãe e Mestra, sente o
dever
de zelar pela conservação incólume da fé a Ela entregue por Cristo e
ameaçada
pelas interpretações pessoais de inovadores da pregação; eis por que lhe
pareceu oportuno reservar o uso da Bíblia a pessoas de sólida formação
cristã nos séculos em que as heresias pretendiam
apoiar no texto sagrado as suas proposições perturbadoras. É,
pois, para desejar que os estudiosos
entendam os porquês da atitude da Igreja dos séculos XVI-XIX e hoje se
sintam
convidados a difundir a S. Escritura em comunhão com a Igreja e a sua
Tradição.
_______________________________
1 A
Sociedade Bíblica de Londres, combatida na
Inglaterra por estar publicando os livros deuterocanônicos, insistiu em
seu
procedimento e, para assegurá-lo, fundou a "Sociedade Bíblica Francesa e
Estrangeira", que continuou a editar os sete livros impugnados pelos
protestantes, mas que finalmente cedeu às pressões contrárias.
2 Trata-se de autores
mencionados nominalmente em outro documento (N.d.R.).