A Igreja restauraria a Inquisição?
Revista:
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
D. Estevão
Bettencourt, osb
Nº 8, Ano
1957, Página 23
"Gostaria de saber algo de mais
exato sobre a Inquisição. Se os "velhos tempos" voltassem, a Igreja
restauraria
a Inquisição?"
A
Inquisição não foi criada de uma só vez nem procedeu sempre do mesmo
modo no
decorrer dos séculos. Por isto distinguem-se.
1) a Inquisição
Medieval, voltada contra as heresias cátara e valdense nos séc. XII/XIII
e
contra um falso misticismo do séc. XIV;
2) a Inquisição
Espanhola, foi instituída em 1478; por
iniciação dos reis Fernando e Isabel; visando principalmente os judeus e
os
muçulmanos, tornou-se poderoso instrumento do absolutismo dos monarcas
espanhóis até o séc. XIX, a ponto de quase não poder ser considerada
instituição
eclesiástica (não raro a Inquisição espanhola procedeu independentemente
de
Roma, resistindo à intervenção da Santa Sé, porque o rei da Espanha a
esta se
opunha);
3) a Inquisição
Romana (também dita "o Santo Ofício"), instituída em 1542 pelo Papa
Paulo III
em vista do surto do Protestantismo.
Apesar das
modalidades de que se revestiu, a Inquisição medieval e romana foi
movida por
alguns princípios e uma mentalidade característicos; é justamente a
estes
princípios que o historiador deve voltar a sua atenção, a fim de poder
formular
um juízo sobre a famosa instituição. Conscientes disto, examinaremos as
origens
da Inquisição, seus procedimentos mais famigerados, para finalmente
chegarmos
alguma apreciação objetiva do acontecimento histórico.
1. Origens
da Inquisição
No antigo
Direito Romano, o juiz não empreendia a procura dos delituosos; só
procedia ao
julgamento depois que lhe fosse apresentada à denúncia. Até a Alta Idade
Média,
o mesmo se deu na Igreja: a autoridade eclesiástica não procedia contra
os delitos
se estes não lhe fossem previamente deferidos. No decorrer dos tempos,
porém,
esta praxe mostrou-se insuficiente. Além disto, no séc. XI apareceu na
Europa
nova forma de delito religioso, isto é, uma heresia fanática e
revolucionária,
como não houvera até então: o catarismo (do grego katharós, puro) ou o
movimento dos albigenses (de Albi, cidade da França meridional, onde os
hereges
tinham seu foco principal). Considerando a matéria por si má, os cátaros
rejeitavam não somente a face visível da Igreja, mas também instituição
básicas
da vida civil - o matrimônio, a autoridade governamental, o serviço
militar - e
enalteciam o suicídio. Destarte constituíam grave ameaça não somente
para a fé
cristã, mas também para a vida pública.
Em bandos
fanáticos, às vezes apoiados por nobres senhores, os cátaros provocaram
tumultos, ataques às Igrejas, etc., por todo o decorrer do séc. XI até
1150
aproximadamente, na França, na Alemanha, nos Países-Baixos... O povo,
com a sua
espontaneidade, e a autoridade civil se encarregaram de os reprimir com
violência: não raro o poder régio da França, por iniciativa própria e a
contra-gosto dos bispos, condenou à morte pregadores: albigenses, visto
que
solapavam os fundamentos da ordem constituída. Foi o que se deu, por
exemplo,
em Orleans (1017), onde o rei Roberto, informado de um surto de heresia
na
cidade, compareceu pessoalmente, procedeu ao exame dos hereges e os
mandou
lançar ao fogo; a causa da civilização e da ordem pública se
identificava com a
da fé! Entrementes a autoridade eclesiástica limitava-se a impor penas
espirituais (excomunhão interdito, etc.) aos albigenses, pois até então
nenhuma
das muitas heresias conhecidas havia sido combatida por violência física
S.
Agostinho (+ 430) e antigos bispos, S. Bernardo (+ 1153), S. Norberto (+
1134)
e outros mestres medievais eram contrários ao uso da força ("Sejam os
hereges
conquistados não pela armas, mas pelos argumentos", admoestava São
Bernardo, In
Cant serm. 64).
Não são
casos isolados os seguintes em 1144 na cidade de Lião o povo quis punir
violentamente um grupo de inovadores que aí se introduzira; o clero,
porém, os
salvou, desejando a sua conversão, e não a sua morte. Em 1077 um herege
professou seus erros diante do bispo de Cambraia; a multidão de
populares
lançou-se então sobre ele, sem esperar o julgamento encerraram-no numa
cabana,
à qual atearam o fogo!
Contudo em
meados do séc. XII a aparente indiferença do clero se mostrou
insustentável: os
magistrados e o povo exigiam colaboração mais direta na repressão do
catarismo.
Muito significativo, por exemplo, é o episódio seguinte: o Papa
Alexandre III
em 1162, escreveu ao arcebispo de Reims e ao Conde da Flândria, em cujo
território os cátaros provocavam desordens:
"Mais vale
absolver culpados do que, por excessiva severidade atacar a vida de
inocentes... A mansidão mais convém aos homens da Igreja do que a
dureza".
Informado
desta admoestação pontifícia, o rei Luís VII de França, irmão do
referido
arcebispo, enviou ao Papa um documento em que o descontentamento e o
respeito
se traduziam simultaneamente.
"Que vossa
prudência de atenção toda particular a essa peste (a heresia) e a
suprima antes
que possa crescer. Suplico-vos ara bem da fé cristã: concedei todos os
poderes
neste campo ao arcebispo (do Reima) ele destruíra os que assim se
insurgem
contra Deus; sua justa severidade será louvada por todos aqueles que
nesta
terra são animados de verdadeira piedade. Se procederes de outro modo,
as
queixas não se acalmarão facilmente e desencardeareis contra a Igreja
Romana as
violentas recriminações da opinião pública (Martene, Amplíssima
Collectio II
683s).
As
conseqüências deste intercâmbio epistolar não se fizeram esperar muito: o
concílio regional de Tour, em 1163, tomando medidas repressivas à
heresia,
mandava inquirir (procurar) os seus agrupamentos secretos. Por fim, a
assembléia de Verona (Itália), à qual compareceram o Papa Lúcio III, o
Imperador Frederico Barbarroxa, numerosos bispos prelados e princípios,
baixou
em 1184 um decreto de grande importância: o poder eclesiástico e o
civil, que
até então haviam agido independentemente um do outro (aquele impondo
penas
espirituais, este recorrendo à força física), deveriam combinar seus
esforços
em visita de mais eficientes resultados os hereges seriam doravante não
somente
punidos, mas também procurados (inquiridos); cada bispo
inspecionaria, por si ou por
pessoas de confiança, uma ou duas vezes por ano as paróquias suspeitas
os
condes, barões e as demais autoridades civis os deveriam ajudar sob pena
de
perder seus cargos ou ver o interdito lançado sobre as suas terras; os
hereges
depreendidos ou abjurariam seus erros ou seriam entregues ao braço
secular, que
lhes imporia a sanção devida.
Assim era
instituída a chamada "Inquisição episcopal", a qual, como mostram os
precedentes
atendia a necessidades reais e a clamores exigentes tanto dos monarcas e
magistrados civis como do povo cristão; independentemente da autoridade
da
Igreja, já estava sendo praticada a repressão física das heresias.
No decorrer
do tempo, porém, percebeu-se que a Inquisição episcopal ainda era
insuficiente
para deter os inovadores; alguns bispos, principalmente no sul da
França, eram
tolerantes; além disto, tinham seu raio de ação limitado às respectivas
dioceses, o que lhes vedava uma campanha eficiente. A vista disto, os
Papas, já
em fins do séc. XII, começaram a nomear legados especiais, munidos de
plenos
poderes para proceder contra a heresia onde quer que fosse. Destarte
surgir a
"Inquisição pontifícia" ou " legatina", que a princípio ainda funcionava
ao
lado da episcopal), aos poucos, porém, a tornou desnecessária. A
Inquisição
papal, recebeu seu caráter definitivo e sua organização básica em 1233,
quando
o Papa Gregório IX confiou aos dominicanos a missão de Inquisidores
haveria
doravante, para cada nação ou distrito inquisitorial, um Inquisidor-Mor,
que
trabalharia com a assistência de numerosos oficiais subalternos
(consultores,
jurados, notários...), em geral independentemente do bispo em cuja
diocese
estivesse instalado. As normas do procedimento inquisitorial foram sendo
sucessivamente ditadas por bulas pontifícias e decisões de concílios.
Entrementes
a autoridade civil continuava a agir, com zelo surpreendente (!), contra
os
sectários. Chama a atenção, por exemplo, a conduta do Imperador
Frederico II,
um dos mais perigosos adversários que o Papado teve no séc. XIII. Em
1220 este
monarca exigiu de todos os oficiais do seu governo, prometessem expulsar
de
suas terras s hereges reconhecidos pela Igreja; declarou a heresia crime
de
lesa-majestade, sujeito à pena de morte e mandou dar busca aos hereges.
Em 1224
publicou decreto mais severo do que qualquer das leis editadas pelos
reis ou
Papas anteriores: as autoridades civis da Lombardia deveriam não somente
enviar
ao fogo quem tivesse sido comprovado herege pelo bispo, mas ainda cortar
a
língua aos sectários a quem, por razões particulares, se houvesse
conservado a
vida. É possível que Frederico II visasse interesses próprios na
campanha
contra a heresia; os bens confiscados redundariam em proveito da coroa.
Não menos
típica é a altitude de Henrique II, rei da Inglaterra: tendo entrado em
luta
contra o arcebispo Tomas Becket, primaz de Cantuária, e o Papa Alexandre
III,
foi excomungado. Não obstante, mostrou-se um dos mais ardorosos
repressores da
heresia no seu reino: em 1185, por exemplo, alguns hereges da Flândria
tendo-se
refugiado na Inglaterra, o monarca mandou prendê-los, marcá-los com
ferro
vermelho na testa e expô-los, assim desfigurados, ao povo; além disto,
proibiu
aos seus súditos lhe dessem asilo ou lhes prestassem o mínimo serviço.
Estes dois
episódios, que não são únicos no seu gênero, bem mostram que o proceder
violento contra os hereges, longe de ter sido sempre inspirado pela
suprema
autoridade da Igreja, foi não raro desencadeado independente desta, por
poderes
que estavam em conflito com a própria Igreja. A Inquisição, em toda a
sua
história, se ressentiu dessa usurpação de direitos ou da demasiada
ingerência
das autoridades civis em questões que dependem primariamente do foro
eclesiástico.
Em
conclusão, o histórico das origens da Inquisição levam-nos a ver que
esta não
foi concebida como órgão de intransigência odiosa, mas, sim, qual medida
defensiva do bem comum, religioso e civil. Consciente disto, o
historiador
distingue entre a intenção dos homens da Igreja que instituíram a
Inquisição, e
a conduta daqueles que a executaram, conduta que passamos a analisar.
2. Alguns
dos procedimentos da Inquisição
As táticas
utilizadas pelos Inquisidores são-nos hoje notórias, pois ainda se
conservam
Manuais de instruções práticas entregues ao uso dos referidos oficiais.
Quem lê
tais textos, verifica que as autoridades visavam fazer dos juízes
inquisitoriais autênticos representantes da justiça e da causa do bem.
Bernardo
de Gui (séc. XIV), por exemplo, tido como um dos mais severos
Inquisidores,
dava as seguintes normas aos seus colegas:
"O
Inquisidor deve ser diligente e fervoroso no seu zelo pela verdade
religiosa,
pela salvação das almas e pela extirpação das heresias. Em meio às
dificuldades
permanecera calmo, nunca cederá à cólera nem à indignação... Nos casos
duvidosos, seja circunspecto, não dê fácil crédito ao que parece
provável e
muitas vezes não é verdade; também não rejeite obstinadamente a opinião
contrária, pois o que parece improvável freqüentemente acaba por ser
comprovado
como verdade... O amor da verdade e a piedade que devem residir no
coração de
um juiz, brilhem nos seus olhos, a fim de que suas decisões jamais
possam
parecer ditadas pela cupidez e a crueldade" (Pratica VI p... ed. Douis
232s).
Já que mais
de uma vez se encontram instruções tais nos arquivos da Inquisição, não
se
poderia crer que o apregoado ideal do Juiz Inquisidor, ao mesmo tempo
eqüitativo e bom, se realizou com mais freqüência do que comumente se
pensa?
Não se deve esquecer, porém, (como abaixo mais explicitamente se dirá)
que as
categorias pelas quais se afirmava a justiça na Idade Média, não eram
exatamente as da época moderna... Além disto levar-se-á em conta que o
papel do
juiz sempre difícil, era particularmente árduo nos casos da Inquisição: o
povo
e as autoridades civis estavam profundamente interessados no desfecho
dos
processos; pelo que, não raro exerciam pressão para obter a sentença
mais
favorável a caprichos ou a interesses temporais; às vezes, a população
obcecada
aguardava ansiosamente o dia em que
"veredictum" do juiz entregaria ao braço secular os hereges
comprovados.
Em tais circunstâncias não era fácil aos juízes manter a serenidade
desejável.
Dentre as
táticas adotadas pelos Inquisidores, merecem particular atenção à
tortura e a
entrega ao poder secular (pena de morte).
A tortura
estava em uso entre os gregos e romanos pré-cristãos que quisessem
obrigar um
escravo a confessar seu delito. Certos povos germânicos também a
praticavam. Em
866, porém dirigindo-se aos búlgaros, o Papa Nicolau I a condenou
formalmente.
Não
obstante, a tortura foi de novo adotada pelos tribunais civis da Idade
Média
nos inícios do séc. XIII, dado o renascimento de Direito Romano. Nos
processos
inquisitoriais o Papa Inocêncio IV acabou por introduzi-la em 1252, com a
cláusula: "Não haja mutilação de membro nem perigo de morte" para o réu.
O
Pontífice, permitindo tal praxe, dizia conformar-se aos costumes
vigentes em
seu tempo (Bullarum amplíssima collectio II 326).
Os Papas
subseqüentes, assim como os Manuais dos Inquisidores, procuraram
restringir a
aplicação da tortura: só seria lícita depois de esgotados os outros
recursos
para investigar a culpa e apenas nos casos em que houvesse meia-prova do
delito
ou, como dizia a linguagem técnica, dois "índices veementes" deste, a
saber: o
depoimento de testemunhas fidedignas, de um lado, e, de outro lado a má
fama,
os maus costumes ou tentativas de fuga
do réu O concílio de Viena (França) em 1311 mandou outrossim que os
Inquisidores só recorressem à tortura depois que uma comissão julgadora e
o
bispo diocesano a houvessem aprovado para cada caso em particular. -
Apesar de
tudo que a tortura apresenta de horroroso ela tem sido conciliada com a
mentalidade do mundo moderno...: ainda estava oficialmente em uso na
França do
séc. XVIII e tem sido aplicada até mesmo em nossos dias...
Quanto à
pena de morte reconhecida pelo antigo Direito Romano, estava em vigor na
jurisprudência civil da Idade Média. Sabe-se, porém que as autoridades
eclesiásticas eram contrárias à sua aplicação em casos de lesa-religião.
Contudo, após o surto do catarismo (séc. XII), alguns canonistas
começaram a
julgá-la oportuna apelando para o exemplo do Imperador Justiniano que no
séc.
VI a infligira aos maniqueus. Em 1199 o Papa Inocêncio III dirigia-se
aos
magistrados de Viterbo nos seguintes termos:
"Conforme a
lei civil, os réus de lesa-majestade são punidos com a pena capital e
seus bens
são confiscados... Com muito mais razão, portanto, aqueles que,
desertando a fé
ofendem a Jesus, o Filho do Senhor Deus, devem ser separados da comunhão
cristã
e despojados de seus bens, pois muito mais grave é ofender a Majestade
Divina
do que lesar a majestade humana" (epist. 2, 1).
Como se vê,
o Sumo Pontífice com essas palavras desejava apenas justificar a
excomunhão e a
confiscação de bens dos hereges estabelecida, porém, uma comparação que
daria
ocasião à nova praxe... O Imperador Frederico II soube deduzir-lhe as
últimas
conseqüências: tendo lembrado numa constituição de 1220 a frase final de
Inocêncio III, o monarca, em 1224, decretava francamente para a
Lombardia a
pena de morte contra os hereges e, já que o Direito antigo assinalava o
fogo em
tais casos, o Imperador os condenava a serem queimados vivos. E 1230 o
dominicano Guala, tendo subido à cátedra episcopal de Bréscia (Itália),
fez
aplicação da lei imperial na sua diocese. Por fim, o Papa Gregório IX,
que
tinha intercâmbio freqüente com Guala, adotou o modo de ver deste bispo:
transcreveu em 1230 ou 1231 a constituição imperial de 1224 para o
Registro das
cartas pontifícias e em breve editou uma lei pela qual mandava que os
hereges
reconhecidos pela Inquisição fossem abandonados ao poder civil, para
receber o
devido castigo, castigo que, segundo a legislação de Frederico II, seria
a
morte pelo fogo.
Os teólogos
e canonistas da época se empenharam por justificar a nova praxe; eis
como o
fazia S. Tomás de Aquino:
"É muito
mais grave corromper a fé, que é a vida da alma, do que falsificar a
moeda, que
é um meio de provar à vida temporal. Se, pois, os falsificadores de
moedas e
outros malfeitores são, a bom direito, condenados à morte pelos
príncipes
seculares, com muito mais razão os hereges, desde que sejam comprovados
tais,
podem não somente ser excomungados, mas também em toda justiça ser
condenados à
morte" (Suma Teológica II/II 11, 3c)
A
argumentação do S. Doutor procede do princípio (sem dúvida autêntico em
si, mas
pouco significativo para o mundo moderno) de que a vida da alma mais
vale d que
a do corpo; se, pois alguém pela heresia ameaça a vida espiritual do
próximo,
comete maior mal do que quem assalta a vida corporal; o bem comum então
exige a
remoção do grave perigo (veja-se também S. Teol. II/II 11, 4c).
Contudo as
execuções capitais não foram tão numerosas quanto se poderia crer.
Infelizmente
faltam-nos estatísticas completas sobre o assunto; consta porém, que o
tribunal
de Pamiers, de 1308 a 1324, pronunciou 75 sentenças condenatórias, dos
quais
apenas cinco mandavam entregar o réu ao poder civil (o que equivalia à
morte);
o Inquisidor Bernardo de Gui em Tolosa, de 1308 a 1323, proferiu 930
sentenças,
das quais 42 eram capitais; no primeiro caso, a proporção é de 1/15; no
segundo
caso, de 1/22.
Não se
poderia negar, porém, que houve injustiças e abusos da autoridade por
parte dos
juízes inquisitoriais. Tais males se devem à conduta de pessoas que, em
virtude
da fraqueza humana, não foram sempre fiéis cumpridoras da sua missão. Os
Inquisidores trabalhavam a distâncias mais ou menos consideráveis de
Roma, numa
época em que, dada a precariedade de correios e comunicações, não podiam
ser
assiduamente controlados pela suprema autoridade da Igreja. Esta porém,
não
deixava de os censurar devidamente, quando recebia notícia de algum
desmando
verificado em tal ou tal região.
Famoso, por
exemplo, é o caso de Roberto o Bugro, Inquisidor-Mor de França no séc.
XIII. O
Papa Gregório IX a princípio muito o felicitava por seu zelo. Roberto,
porém,
tendo aderido à heresia, mostrava-se excessivamente violento na
repressão da
mesma. Informado dos desmandos praticados pelo Inquisidor, o Papa o
destituiu
de suas funções e mandou encarcerar. - Inocêncio IV, o mesmo Pontífice
que
permitiu a tortura nos processos da Inquisição, e Alexandre IV,
respectivamente
em 1246 e 1256, mandaram aos Padres Provinciais e Gerais dos Dominicanos
e
Franciscanos, depusessem os Inquisidores de sua Ordem que se lhes
tornassem
notórios por sua crueldade.
O Papa
Bonifácio VIII (1294-1303), famoso pela tenacidade e intransigência de
suas
atitudes, foi um dos que mais reprimiram os excessos dos Inquisidores,
mandando
examinar, ou simplesmente anulando, sentenças proferidas por estes.
O Concílio
regional de Narbona (França) em 1243 promulgou 29 artigos que visavam
impedir
abusos do poder. Entre outras normas, prescrevia aos Inquisidores só
proferissem sentença condenatória nos casos em que, com segurança,
tivessem
apurado alguma falta, "pois mais vale deixar um culpado impune do que
condenar
um inocente" (can. 23).
Dirigindo-se
ao Imperador Frederico II, pioneiro dos métodos inquisitoriais, o Papa
Gregório
IX aos 15 de julho de 1233 lhe lembrava que "a arma manejada pelo
Imperador não
devia servir para satisfazer aos seus rancores pessoais, com grande
escândalo
das populações, com detrimento da verdade e da dignidade imperial" (ep.
saec.
XIII 538, 550).
Conclusão
Procuremos
agora formular um juízo sobre a Inquisição medieval.
Não é
necessário ao católico justificar tudo que, em nome desta, foi feito. É
preciso, porém, que se entendam as intenções e a mentalidade que moveram
a
autoridade eclesiástica a instituir a Inquisição. Estas intenções,
dentro do
quadro de pensamento da Idade Média, eram legítimas diríamos até: deviam
parecer aos medievais inspiradas por santo zelo. Podem-se reduzir a
quatro os
fatores que influíram decisivamente no surto e no andamento da
Inquisição:
1) os
medievais tinham profunda consciência do valor da alma e dos bens
espirituais
(consciência que hoje em dia se acha muito atenuada). Tão grande era o
amor à
fé (estio da vida espiritual) que se considerava a deturpação da fé pela
heresia como um dos maiores crimes que o homem pudesse cometer (notem-se
os
textos de S. Tomaz e do Imperador Frederico I acima citados); essa fé
era tão
viva e espontânea que dificilmente se admitiria viesse alguém a negar
com boas
intenções um só dos artigos do credo.
2) As
categorias de justiça na Idade Média eram um tanto diferentes das
nossas: havia
muito mais espontaneidade (que às vezes equivalia à rudez) na defesa dos
direitos. Pode-se dizer que os medievais, no caso, seguiam mais o rigor
da
lógica do que a ternura do sentimento; o raciocínio abstrato e rígido
neles
prevalecia por vezes sobre o senso psicológico (nos tempos atuais
verifica-se
quase o contrário: muito se apela para a psicologia e o sentimento,
pouco se
segue à lógica; os homens modernos não acreditam muito em princípios
perenes;
tendem a tudo julgar segundo critérios relativos e relativistas,
critérios de
moda e de preferência subjetiva).
3) A
intervenção do poder secular cresceu profunda influência do
desenvolvimento da
Inquisição. As autoridades civis anteciparam-se na aplicação da força
física e
da pena de morte aos hereges; instigaram a autoridade eclesiástica para
que
agisse energicamente;